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Não conte a ninguém

Com muita calma, coisa que não era de seu feitio, ele retira de seu bojo as temperanças. Seus olhos fora de órbita estão escondidos por baixo dos óculos rosa. Parece-se com qualquer pessoa que anda pela rua. Mas ele não é! Longe disso…Carrega espinhos dentro da boca que o machucam constantemente, e por isso, vive sorrindo. Pois ao mostrar os dentes, os espinhos não encostam na língua e ele sente menos dor. Seu corpo é todo chamuscado de queimaduras que ocorreram quando era uma criança ainda. Naquele dia em que lépido e faceiro resolveu mergulhar no riacho doce perto de casa. Não sabia que aquela doçura eram algas venenosas  que o atacaram famintas. Afinal, o doce era ele. Demorou para a mãe ir tira-lo de lá e as pressas tentar compressas. A pele amarrotou e escamou. Parece peixe por baixo do terno. Sua sorte é que as mãos e a cabeça não foram atingidos, somente o forte odor penetrou em sua saliva criando os espinhos. Outro inconveniente são seus cabelos. Pois não são cabelos de verdade, são grama cinza. Isso não se sabe se foi consequência do mergulho no riacho doce, ou se já nasceu com ele, porque até os 10 anos ele era totalmente careca. Quando as primeiras substancias começaram a brotar em sua cabeça, viu-se que não eram pelos, mas capim. Então, ele já está acostumado a regar-se. Quando precisa aparar, usa uma tesoura de jardinagem que é mais eficaz. Todos que o conhecem, não entendem como ele consegue aquele perfume de natureza que sempre está com ele. Já pediram muito o nome do produto que usa, mas ele, calado como é, só sorri com sua boca de espinhos. Leva uma vida normal. Trabalha na banca da esquina, onde consegue ficar escondido do sol. Passa os dias foleando revistas de jardinagem, para ver se descobre algum procedimento eficiente para sua condição de peixe com boca de espinhos e cabelo de grama. Vive sozinho em um porão, onde tem todas as coisas que precisa para quando volta para casa no final do dia. Pode retirar o terno, enfiar-se na banheira gelada nu. Então para de sorrir e verte lágrimas de dor, deixando a grama crescer em sua cabeça, de forma livre, regando-se em sinfonia de escamas. Põe a temperança de lado e grita, solitário ser que não cabe no mundo. Ninguém sabe. Ninguém viu. Por isso, não conte a ninguém.


Silvia Teske
– artista