Narrativas de linha e agulha
Recentemente, elaborando um novo repertório de contos para apresentar, deparei-me com a questão que sempre envolve criação de roteiros: como costurar um texto no outro? Já fiz com música, já fiz com dança e projeção de imagens, mas nunca com o óbvio, como sugere o termo: linha e agulha! Então aprofundei a pesquisa, para buscar o que há em comum entre estas práticas, e me deparei com sensações da memória, tradições milenares e sutilezas próprias do universo feminino. Segue o texto que criei para a abertura do espetáculo Ponto e Conto:
Tecido, textura, texto. Palavras que têm a mesma origem. E não à toa.
Há muito em comum no ato de tecer um pano e de tecer uma história. Ambos se formam pela trama.
Linhas tramadas formam o tecido e suas combinações resultam em mais ou menos leveza, ou densidade, ou colorações. Uma história é construída tramando-se personagens, ações, ideias, que também têm esse fim.
O ato de tecer sempre esteve muito ligado ao ato de narrar e cantar histórias. Em várias civilizações, culturas e países, por séculos e séculos, formaram-se rodas em que a costura e o bordado aconteciam embalados por cânticos ou causos.
As duas atividades têm também, em comum, sua preservação feita pelo feminino. Enquanto os homens saíam para trabalhar fora, cabia às mulheres as atividades de linhas e agulhas e a da transmissão oral de lendas, conselhos, receitas e acalantos.
Em casa, vó, tias e mãe, mantinham viva a tradição de se criar com linhas. Lãs trançadas por duas grandes agulhas criaram blusas e gorros para os invernos, e também a manta de batismo que envolveu meu irmão. Meus vestidos mais importantes ganham formas pelas mãos de minha tia e madrinha, como uma bênção. Toalhas de rosto e banho, sempre tiveram a barra bordada em ponto cruz, muitas vezes com o nome do proprietário, em letra cursiva, enfeitada de florzinhas. Das toalhas e trilhos de mesas aos panos de prato, muitos desenhos surgiram formados por centenas de x.
Essa prática ancestral e familiar me habita, e procura escapar por entre tantas ocupações diárias, reuniões, apresentações, aulas e outras atividades. Aprendi a usar a agulha quando criança ainda, ao fazer roupinhas para as bonecas com retalhos. Furei o dedo muitas vezes e a imagem do sangue brotando da pele seguida pelo sabor dele quando dissolvido na saliva, são uma viagem pela memória.
Gosto de tecer com palavras também. A criação de enredos, a possibilidade de novos percursos, o artesanato que é desenhar parágrafos, está vivo em meu fazer cotidiano. Poder usar a minha voz para garantir a eternidade de um conto milenar é a dádiva mais preciosa. Poder usar as mãos para guiar um fino metal comandante de uma linha, também. E faço isso como uma reverência a todas elas, minhas professoras, das quais herdei o gosto por tramar.
Lieza Neves – atriz, escritora, produtora cultural…