O abuso da Teologia: a arrogância da razão que não nutre a fé, mas obscurece a presença de Deus no mundo
Paulo Vendelino Kons, historiador
Paulo Vendelino Kons, historiador
É triste constatar que, mesmo nas Igrejas e Comunidades, existe uma teologia que procura, sobretudo, ser acadêmica, parecer científica, e esquece a realidade vital, a presença de Deus, sua presença entre nós, sua maneira de falar nos dias de hoje, não somente no passado.
Já São Boaventura distinguia no seu tempo duas formas de teologia. Escreveu ele: “Há uma teologia que provém da arrogância da razão, quer dominar tudo, faz Deus passar de sujeito ao objeto que estudamos, quando Ele deveria ser sujeito que nos fala e nos guia”. Existe realmente esse abuso da teologia, que é arrogância da razão e não nutre a fé, mas obscurece a presença de Deus no mundo.
Há também uma teologia desejosa de conhecer mais, por amor ao amado, é estimulada pelo amor, guiada pelo amor, quer conhecer melhor o amado. Essa é a verdadeira teologia, que provém do amor de Deus e deseja entrar mais profundamente em comunhão com Cristo.
De fato, são grandes as tentações hoje; sobretudo, impõe-se a assim chamada “visão moderna do mundo” (Bultmann, “modernes Weltbild”), que se torna o critério de tudo quanto seria possível ou impossível. E assim, com esse critério de que tudo é como sempre, de que todos os acontecimentos históricos são do mesmo gênero, exclui-se precisamente a novidade do Evangelho, exclui-se a irrupção de Deus, a verdadeira novidade que é a alegria da nossa Fé.
Apesar dos abusos, sabemos que em todas as partes do mundo há muitos teólogos que vivem verdadeiramente da Palavra de Deus, nutrem-se da meditação, vivem a Fé da Igreja e querem colaborar para que a Fé esteja presente em nossos dias.
Não há por que ter medo do fantasma da cientificidade. Acerca do tema, declara o magno teólogo Joseph Aloisius Ratzinger: “Eu comecei a estudar teologia em janeiro de 1946. Vi, portanto, quase três gerações de teólogos e posso dizer: as hipóteses que naquele tempo, e depois nos anos 60 e 80, eram as mais novas, absolutamente científicas, quase dogmáticas, envelheceram nesse ínterim e não valem mais! Muitas delas parecem quase ridículas.”
Com a tese “Povo e casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho”, o teólogo Ratzinger, que recebeu o doutorado em 1953, exorta os colegas para que “tenham a coragem de resistir à aparente cientificidade, de não submeter-se a todas as hipóteses do momento, mas de pensar realmente a partir da grande Fé da Igreja, que está presente em todos os tempos e nos dá acesso à verdade. Sobretudo, não pensem que a razão positivista, a qual exclui o transcendente – que não pode ser acessível -, é a verdadeira razão. Essa razão débil que apresenta apenas as coisas experimentais é de fato uma razão insuficiente.”
O hoje Papa Emérito conclui: “nós, teólogos, devemos usar a razão ampla, aberta à grandeza de Deus. Devemos ter a coragem de ir para além do positivismo, até a questão das raízes do ser. Isto me parece de grande importância. É necessário, portanto, ter a coragem da razão grande, ampla, ter a humildade de não submeter-se a todas as hipóteses do momento, de viver da grande Fé da Igreja de todos os tempos. Não existe uma maioria contra a maioria dos Santos: a autêntica maioria é a dos Santos na Igreja, e pelos Santos devemos nos orientar!”
No Colóquio do Santo Padre com os Sacerdotes, dado na Cidade do Vaticano, durante a vigília de encerramento do Ano Sacerdotal, em 10 de junho de 2010, declarou Bento XVI: “digo o mesmo aos seminaristas e sacerdotes: tomem em consideração que a Sagrada Escritura não é um livro isolado: é vivente na comunidade viva da Igreja, que é o mesmo sujeito em todos os séculos e assegura a presença da Palavra de Deus. O Senhor deu-nos a Igreja como sujeito vivo, com a estrutura dos Bispos em comunhão com o Papa, e essa grande realidade dos Bispos do mundo em comunhão com o Papa os garante o testemunho da verdade permanente. Temos confiança nesse Magistério permanente da comunhão dos Bispos com o Papa, que nos representa a presença da Palavra. Além disso, confiamos também na vida da Igreja e, sobretudo, devemos ser críticos. Certamente a formação teológica – gostaria de dizer isso aos seminaristas – é muito importante. Em nosso tempo, devemos conhecer bem a Sagrada Escritura, inclusive contra os ataques das seitas; precisamos ser, de fato, amigos da Palavra. Devemos conhecer também as opiniões de nossa época, para poder responder racionalmente, para poder dar “razão da nossa Fé”, como diz São Pedro.”
No mesmo encontro, o Papa Ratzinger lembrou que o Catecismo contém a síntese da nossa Fé. “A formação é muito importante. Mas devemos ser igualmente críticos: o critério da Fé serve para ver também os teólogos e a teologia. O Papa João Paulo II deu-nos um critério absolutamente seguro, no Catecismo da Igreja Católica: vemos ali a síntese da nossa Fé, e esse Catecismo é deveras o critério para observarmos aonde vai uma teologia aceitável ou não aceitável. Recomendo, pois, a leitura, o estudo desse texto, e podemos assim avançar com uma teologia crítica no sentido positivo, isto é, crítica contra as tendências da moda e aberta às verdadeiras novidades, à profundidade inexaurível da Palavra de Deus, que se revela nova em todos os tempos, inclusive no nosso.”
Bento XVI finalizou recordando que “a oração não é algo secundário: rezar é propriamente a ‘profissão’ do sacerdote”.
Entendo eu, um humilde leigo católico, que a Teologia deva ser, smj, instrumento de fortalecimento da nossa fé: como se abrisse para nós, por um momento, a cortina do mistério que separa o mundo visível do mundo invisível.
E na força desta luz, que por esta pequena abertura da cortina entra no nosso mundo, somos encorajados como o profeta Elias (cf. 1 Reis 19, 8) a continuarmos com ânimo a nossa peregrinação rumo ao monte Horeb, símbolo do céu. E assim nos levar a uma maturidade interior para nos fazer crescer sempre mais profundamente na fé em Deus.
Assim torna-se um trampolim para nos elevarmos mais alto e solidamente na vida cristã numa fé vivida com uma consciência clara da ação de Deus no nosso dia a dia, como está escrito no Salmo: “Senhor, Tu examinaste-me e conheces-me, sabes quando me sento e quando me levanto; à distância conheces os meus pensamentos…. Os teus olhos viram-me em embrião…. Todos os meus dias estavam modelados, ainda antes que um só deles existisse. (Salmo 139, 11)
Verificamos, a partir dos anos cinquenta, uma ruptura entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, uma situação dramática para a fé porque torna incerto o seu autêntico ponto de referência: a amizade íntima com Jesus, da qual tudo depende.
Entendo que para ser teólogo e para desempenhar o serviço para a universidade e para a humanidade ele tem que ir além e perguntar: mas é verdadeiro o que ali é dito? E se for verdadeiro, diz-nos respeito? E de que maneira? E como podemos reconhecer que é verdadeiro e que nos diz respeito? E realçar de modo essencial, decisivo, o fundamento histórico do próprio cristianismo: o Evangelho está relacionado com a história.
E reconhecer o benefício derivado na vida da Igreja da exegese histórico-crítica e dos outros métodos de análise do texto desenvolvidos em tempos recentes.
Para nossa visão da sagrada Escritura a atenção a estes métodos é imprescindível e está relacionada com o realismo da encarnação. Esta necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no Evangelho segundo João (1, 14): Verbum caro factum est. O fato histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e por isso deve ser estudada com os métodos da pesquisa histórica séria.
Pedimos o compromisso intelectual para responder a nível científico, e depois de ter ouvido os outros saberes, a uma pergunta exigente para o homem contemporâneo: é verdadeiro aquilo em que cremos ou não?
Na teologia está em jogo a questão acerca da verdade; ela é o seu fundamento último e essencial. O factum est do Prólogo de João (1, 14) é válido como categoria cristã fundamental não só para a encarnação como tal, mas deve ser reivindicado também para a última ceia, para a cruz e a ressurreição: a encarnação de Jesus está ordenada para o sacrifício de si mesmo pelos homens e este para a ressurreição; de outra forma o cristianismo não seria verdadeiro. Podemos olhar para a verdade deste factum est não no modo da certeza histórica absoluta, mas reconhecer a sua seriedade lendo de maneira justa a Escritura como tal.
Porventura não provém de Jesus um raio de luz que cresce ao longo dos séculos, um raio que não podia provir de um simples ser humano, um raio mediante o qual entra deveras no mundo o esplendor da luz de Deus? Teria podido, o anúncio dos apóstolos, encontrar fé e edificar uma comunidade universal, se não tivesse agido nele a força da verdade?
O teólogo não pode se dissociar da realidade do caminho de fé que a Igreja fez no tempo e continua a percorrer hoje. Um caminho que nasce precisamente a partir do encontro com uma Pessoa real, verdadeira e vivente. E para tanto necessitamos de teólogos que sejam uma testemunha séria, credível, competente, apaixonada.
NOTA: Na segunda e terceira semana de novembro de 2018, acometido septicemia, estive alguns dias hospitalizado. E muito refleti, e também me entristeci, sobre o tema abaixo. E senti uma motivação interior muito grande para escrever acerca dele, mesmo admoestado pela minha irmã caçula Anastacia, graduada em Filosofia e Direito, que me dizia: “você não tem formação na área de Teologia, é melhor não escrever nada”, quando lhe falei do chamado interior de “colocar no papel” e compartilhar a reflexão realizada no Hospital Arquidiocesano Cônsul Carlos Renaux, em Azambuja – Brusque/SC.