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O inferno de Dante e o Cid-10

O inferno de Dante e o Cid-10

Nunca esqueci aquele paciente que há 30 anos foi levado para a consulta pela sua desesperada esposa, era uma segunda feira. Roberto tinha cerca de cinquenta anos e tinha passado o fim de semana num retiro espiritual.

No domingo à noite iniciara com delírios e alucinações, dizia que estava sendo perseguido para ser levado ao inferno e que estava fadado a arder naquele fogo eterno de forma irreversível. Embora escapasse do inferno não conseguiu escapar de uma internação e do uso de altas doses de psicotrópicos.

Foi muito difícil reverter esse surto psicótico. Roberto tinha curso superior e o fato de nunca ter lido a obra “Divina Comédia” de Dante Alighieri foi uma vantagem.

Se sua mente fosse povoada pela rica e criativa descrição que Dante faz do Inferno, dividido em nove círculos que iam da superfície até o centro da terra, suas alucinações poderiam ter sido piores. Os pecadores na obra de Dante eram encaminhados para cada círculo dependendo do tipo e da gravidade do pecado cometido.

Quando se trata de julgar crimes e dosificar penas sabemos que os humanos falhamos com frequência e dessa forma muitos portadores de transtornos psiquiátricos, catalogados no código internacional de doenças (CID) poderiam habitar o inferno da Divina Comédia.

Ao círculo um, chamado de limbo, eram encaminhadas pessoas virtuosas, contestadoras e não cristãs, lá estavam Sócrates, Platão e Aristóteles. Lá caberiam portadores de Transtorno Desafiador Opositor, CID-10: F91.3.

Ao segundo círculo iam os que cometiam luxúria, lá estava Cleópatra, lá seriam penalizadas pessoas com impulso sexual excessivo, CID-10: F52.7. No terceiro círculo encontramos os que cometiam o crime de gula, portadores de Bulimia Nervosa teriam grandes chances de estarem lá, CID-10: F50.2.

No quarto círculo estão os acumuladores e os gastadores, esse andar estaria povoado de portadores de TOC, CID-10: F42. Ao quinto círculo vão as pessoas raivosas, portadores de Transtorno Explosivo Intermitente poderiam se enfrentar lá, CID-10: F63.8.

No sexto círculo começam os castigos mais severos, lá estão os epicureus, os que não acreditam na eternidade da alma, os chamados hereges. Muitos maníacos estariam lá, CID-10: F30. No sétimo círculo se encontram os que praticaram violência contra os outros, contra eles mesmos ou contra Deus. Átila o huno cumpre sua condena aqui, alguns tipos de transtorno de personalidade encontrariam aqui seu lugar, CID-10: F60.

O oitavo círculo é bem fundo, Dante chega lá nas costas de um monstro gigante. Aqui estão todo tipo de fraudadores. Bruxos, astrólogos, falsos profetas, ladrões, políticos corruptos e falsificadores. Muitas categorias de transtornos poderiam ser incluídas aqui, por exemplo a Cleptomania F63.2.

Ao noveno círculo vão os traidores. Ao contrário do que se pensa sobre o inferno, este círculo é um lago de gelo onde ficam os traidores aos amigos, família e ao próprio Deus. Traições cometidas com frieza e sem remorsos, comportamento que lembra ao Transtorno de Personalidade Antissocial, CID-10: F60.2.

A Divina Comédia é um poema épico estruturado em três partes, o inferno, o purgatório e o paraíso. Foi escrita entre 1312 e 1321, Dante tinha frequentado aulas de medicina e pertencia ao grêmio de médicos e farmacêuticos de Florença. Há na sua obra referência a vários sintomas neurológicos como cefaleia, distonia cervical, crises epilépticas, amaurose transitória, paralisias e alucinações visuais.

Suas descrições do comportamento humano são tão completas que sua obra tem sido considerada como precursora da psicanálise. A caracterização comportamental dos personagens mostra que Dante tinha um profundo conhecimento sobre as virtudes e os desvios da conduta humana.

Mesmo que o papa Bento XVI tenha afirmado que o purgatório não existe como lugar físico, o purgatório de Dante continuará a fascinar e deleitar aos leitores da sua obra até o fim dos tempos. A Divina Comédia é uma excelente sugestão de leitura, não para ter pavor do inferno, medo do purgatório ou vontade do paraíso e sim pelo simples prazer da leitura.