Olhar… ou não olhar?
Eu olho mesmo
Sabe quando a gente cruza o olho com alguém que tem algo que chama a atenção? Normalmente algo diferente da gente, ou do comum, da maioria. Então, aprendemos que ser educado é não olhar. Pega mal. Ficar encarando, analisando. Deixa o outro constrangido.
São posturas do mundo adulto. Porque criança, até a idade de alguém ter ensinado que “ficar olhando” e “apontar o dedo” é feio, olha sem pudor. Olha sem desviar o olhar. Podem experimentar. E se a gente mantém, mesmo sem fazer careta, dar tchauzinho, ela continua olhando.
Esse olhar é de investigação. Olhar de conhecer o outro. E perdemos isso com o tempo. Fazer isso com pessoas estranhas então, é proibido.
Muitas vezes andando nas ruas (e eu ando muito!) me pego lendo a figura de alguém que cruza meu caminho, ou que está sentado, ou me atendendo numa loja. E normalmente são as pessoas que menos devemos olhar. Por educação.
É errado olhar aquele que tem uma prótese na perna, ou a senhora de lenço no lugar de cabelo, ou a menina com uma tatuagem enorme na panturrilha, ou o homem que treme ao levar a xícara de café à boca. Também não devemos olhar para quem tem outra cor de pele, outro tipo de cabelo. A mãe que traz no carrinho uma síndrome, um acidente genético, um “por quê?”. Não devemos olhar cicatrizes e outras marcas na pele.
No meu ritmo acelerado, passo o olhar por segundos, ou frações de um, por estas pessoas. E pela boa educação, só olho mais quando não estão me vendo, “boto reparo” nessas pessoas que têm suas marcas da diferença.
Imagino que atrás de cada uma tem uma história. Um acidente, uma doença, um momento de ruptura. Uma repressão, uma vontade de ser visto. São todas dores. E elas aparecem, não são como as dores da alma, choradas em casa, disfarçadas de sorrisos diários. São sinais de dores, assinaturas de que ali naquele corpo ela já se alojou alguma vez.
Por isso eu olho. É meu jeito de reconhecer a humanidade, vendo pessoas e suas dores passando para lá e para cá, com seus olhares de fortaleza, de quem tem uma grande história para contar.
Lieza Neves – atriz, escritora, produtora cultural…
Problematizando o olhar
Licença! O bichinho da problematização está passando por aqui, para dar o ponto de vista de quem é alvo (ia dizer vítima, mas aí seria exagero) dos olhares investigativos descritos e defendidos aí ao lado pela Lieza.
Como problematizar não é simplesmente ser do contra, tenho que começar dizendo que compreendo muito bem o que ela quer dizer. Evitar olhar o outro é uma forma de construir muros, de se isolar. Mas… vamos ao mas!
Desde quando perdi pela primeira vez os cabelos para a quimioterapia, comecei a ficar muito atenta a esses olhares. E, vou dizer, aqueles que não são meramente investigativos… acabam sendo a expressão involuntária de um preconceito. É a mulher que fixa o olho com uma expressão tão penalizada no rosto que praticamente equivale ao reconhecimento de uma pena de morte. É a criança que, contaminada pelo medo da diferença, inoculado pela família desde muito cedo, encara apavorada a pessoa que ela não reconhece igual, antes de se esconder desse “bicho papão” desconhecido.
Não é o olhar que incomoda. É o estranhamento, o julgamento, a mensagem clara de que tem algo errado com você. Você causa um incômodo. Talvez você não devesse atrapalhar as pessoas, impondo sua presença desafiadora da normalidade em público.
Mesmo que a gente, “enquanto” ser humano, carregue no colo um componente narcisista inegável, também queremos nos dissolver na multidão uniforme. E quando algo na gente se destaca, não intencionalmente, um olhar curioso pode ser um tiro. Um tapa. A prova viva de que não pertencemos mais, temporariamente ou permanentemente.
Nós temos um problema com a diferença, não é mesmo? Uma reação quase instantânea de rejeição ou de medo. Aí, de repente, está a base do racismo, da homofobia, da xenofobia. Desconfio que esse medo primal é até anterior às convenções sociais que tem lá suas bases na manutenção do poder e no domínio econômico. Essa reação é a que transparece na rotina dos olhares cheios de julgamento que uma parte das pessoas exercita, quando se depara com alguém que não se encaixa no padrão industrial das multidões.
Eu sei, claro, que não é este olhar que a Lieza está analisando aí ao lado. Esse olhar que segue, que imagina e que, com um pouco de exercício, se torna empático, fazendo com que a gente meio que se coloque no lugar do outro, é de uma beleza revolucionária. Mas, olha, dito por quem passou a observar os observadores, não é o olhar mais comum, de jeito nenhum.
Então, concluindo a problematização, fica um conselho: antes de olhar para os outros, dê uma olhadinha para você, primeiro. E repare bem em que tipo de olhar você está usando na rua.
Claudia Bia – jornalista e diferentona