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Os dilemas das doenças raras

Vivemos em tempos em que a comunicação viaja muito mais rápido que o pensamento. Temos a falsa impressão de que estamos sabendo de tudo no mesmo instante em que as coisas acontecem. 

Como resultado disso as pessoas tomam conhecimento de crianças, adolescentes e adultos portadores de alguma doença incapacitante cujo tratamento é de altíssimo custo. Invariavelmente os familiares solicitam ajuda pelas redes sociais para o pagamento dos custos através de “vaquinhas”.

As doenças raras constituem um grupo grande de doenças que acabam atingindo um grupo reduzido de pessoas.  Segundo a OMS, toda doença que atinge menos do que 5 pessoas numa população de 10 mil pode ser considerada rara. A lista é grande e inclui mais de 7 mil doenças. 

No começo da minha prática clínica fui chamado a atender uma criança de 6 anos numa região rural, era o primeiro filho de uma família de agricultores. 

O pequeno que na época já estava acamado era portador de uma rara doença chamada Leucodistrofia Metacromática e estava tendo crises convulsivas muito frequentes. A doença tinha comprometido severamente seus movimentos, sua fala e parte importante da sua capacidade cognitiva. 

Além de controlar as convulsões, a medicina não tinha nenhuma solução para essa doença na década de 90. 

Em 2024 a Orchard Therapeutics lançou o primeiro medicamento eficaz para deter o avanço dessa Leucodistrofia, o Lenmeldy, a um preço de R$ 25 milhões. É uma terapia genética que substitui o gene alterado que provoca a doença. 

Resta dizer que se existisse nos anos 90, a família daquele paciente não teria recursos para poder custear esse tratamento. Uma porção considerável dessas doenças raras são causadas por mutações genéticas. 

Muitos desses tratamentos, que prometem a cura, na verdade conseguem bloquear ou diminuir a progressão da doença, o que já é uma grande vitória. 

Todos já ouvimos falar do Zolgensma, a terapia contra Atrofia Muscular Espinhal, um dos medicamentos mais caros do mundo que foi lançado em 2019. 

Até outubro de 2021 o Ministério da Saúde tinha gasto mais de R$ 430 milhões em 46 tratamentos com esse remédio. Atualmente esse valor supera R$ 1 bilhão. 

No ano passado, o Ministério da Saúde realizou um acordo com o fabricante para diminuir o preço e dividir responsabilidades na resposta ao tratamento. Se não houver a melhora esperada, o pagamento seria descontinuado, muitos países europeus já tinham adotado este tipo de mediação. 

A população fica surpresa, com razão, com os preços estratosféricos das novas terapias. Acontece que nesta área os preços não são definidos apenas pelos custos, como acontece em grande parte da economia de subsistência, e sim pelas expectativas dos lucros que a nova droga pode gerar. Lembremos que os grandes laboratórios respondem a investidores ávidos por lucros. 

Outro fator para explicar os altos preços das novas terapias é o fato que com laboratórios menores que desenvolvem essas moléculas geralmente são comprados pelas grandes farmacêuticas quando estão na fase final de produção de um medicamento altamente promissor. 

Foi o que aconteceu no caso do Zolgensma da start-up AveXis que foi comprada pela Novartis em 2018.  A indústria farmacêutica não está livre das regras do mercado onde o peixe grande engole o peixe pequeno. 

O simples anúncio de que um laboratório está prestes a lançar um novo medicamento já aumenta significativamente o valor de mercado de suas ações. Que o medicamento seja o único disponível é outro trunfo para o laboratório impor seu preço.  

A pesquisadora Vera Lúcia Pepe da Fiocruz acredita que muitas vezes se impõe à sociedade um ônus de financiar um novo medicamento sem evidências robustas a um preço excessivo e pouco transparente. 

Sim, nossa saúde também é regida pelas leis de mercado que neste caso específico se manifesta da forma mais crua e cínica, causando muita dor a milhares de doentes e a seus familiares.