Responsável por consultas oftalmológicas na região, associação é alvo de mais de dez investigações do MP-SC
Olhar Pelo Próximo é suspeita de realizar venda casada de óculos durante procedimentos
Olhar Pelo Próximo é suspeita de realizar venda casada de óculos durante procedimentos
A Associação Olhar Pelo Próximo, que recentemente prestou serviços em mutirões de consultas oftalmológicas em Brusque, Guabiruba e Botuverá, é alvo de 12 investigações do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), por suspeita de venda casada de óculos, articuladas durante os procedimentos.
Os atendimentos da associação são feitos mediante convênios firmados pelo Consórcio de Saúde da Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (Ammvi), que a contratou para as consultas nos municípios associados.
A associação é investigada, no estado, por promotores de Justiça nas comarcas de Brusque, Ascurra, Trombudo Central e Rio do Campo. Os procedimentos variam desde notícias de fato – investigações preliminares – até inquéritos civis – já com elementos mais robustos a respeito de irregularidades.
Uma ação civil pública já foi ajuizada contra a associação, em Rio do Campo, mas ainda não teve andamento no poder Judiciário. Todas as investigações foram iniciadas em 2019.
As denúncias feitas contra a Associação Olhar Pelo Próximo seguem roteiro semelhante. Um exemplo está contido em inquérito aberto pelo MP-SC de Trombudo Central.
Segundo a Promotoria, próximo ao local em que foram realizadas as consultas oftalmológicas gratuitas para a população, foi instalado um empreendimento comercial de produtos ópticos.
Conforme as denúncias, aos pacientes que fizeram a consulta foi indicado, por pessoas a serviço da associação, que fizessem seus óculos nessa empresa, identificada como Focus Comércio de Produtos Óticos. Tanto esta quanto a associação são originárias do estado de Goiás.
Em Brusque, as duas denúncias feitas ao Ministério Público possuem teor semelhante ao descrito em Trombudo Central. Fontes ouvidas por O Município relatam que os pacientes não foram obrigados a comprar os óculos com a empresa indicada, mas que houve um claro direcionamento para essa venda.
De acordo com uma pessoa que esteve na consulta, ouvida sob a condição de anonimato, servidores da associação informavam os pacientes, durante os procedimentos, sobre um local onde poderiam comprar óculos mais baratos – este local é a empresa Focus, que tinha montado estrutura de atendimento nas proximidades.
Em comum entre a Focus e a Associação Olhar Pelo Próximo, em todas as investigações, está o fato de que sempre onde a primeira presta serviços de consultas oftalmológicas a segunda se estabelece para vender óculos.
Na Promotoria de Trombudo Central, o inquérito foi instaurado pelo promotor Michel Eduardo Stechinski por suspeita de práticas abusivas, classificadas como vendas casadas – vedadas pelo Código de Defesa do Consumidor, por “induzir os pacientes a adquirirem os óculos no estabelecimento comercial de sua propriedade e/ou parceria”.
Em Rio do Campo, onde as investigações estão mais avançadas, a promotora Renata de Souza Lima chegou a expedir recomendação à prefeitura para que fosse anulado o alvará de funcionamento e impedidas as atividades da empresa Focus, “em razão da flagrante venda casada realizada”.
Na ação civil pública ajuizada no município, o Ministério Público informa que foram ouvidas inicialmente cinco pessoas que foram atendidas pela Associação Olhar pelo Próximo, as quais afirmaram que “eram orientados pelos integrantes da associação sobre a empresa Focus, que estaria na cidade vendendo óculos por um preço razoável, sendo que a armação seria gratuita”.
Posteriormente, foi realizada fiscalização do Conselho Regional de Medicina, o qual informou que a associação não estava inscrita na regional. O MP-SC ouviu mais três pessoas atendidas, “as quais mencionaram que todos eram orientados da existência da Ótica Focus na cidade”.
“Ante todo o processado nos autos do inquérito civil, é possível concluir que a prática consumerista abusiva, com a atuação da associação e da Focus ficou devidamente comprovada”, relata a Promotoria.
“Em decorrência da vulnerabilidade do consumidor, toda e qualquer prática que tenha como objetivo diminuir a sua liberdade de escolha, bem como induzi-lo de qualquer maneira, é violadora de seus direitos”, destaca a petição inicial da ação.
Ainda segundo o Ministério Público, foi constatada a relação de proximidade entre a associação e a Focus por diversos fatos. Um deles é que elas já tiveram endereço no mesmo prédio comercial, em Goiás, e que o presidente da associação é casado com uma das sócias da ótica.
“Assim, fica claro que a atitude da associação, ao aduzir em suas palestras que não está obrigando a compra do óculos juntamente com a ótica, vislumbra os consumidores com a promessa de fornecimento de armação gratuita e valores mais acessíveis, o que amarra e mascara a venda casada”.
Na ação, o MP-SC pede o pagamento de danos morais coletivos, no valor de R$ 200 mil.
Em Brusque, há dois procedimentos recém finalizados na 4ª Promotoria de Justiça, a cargo da promotora Susana Perin Carnaúba. No despacho em que encerra a investigação, a promotora afirma que foi feita uma fiscalização e não foi constatada a irregularidade da venda casada descrita nas denúncias.
Em relação às informações relacionadas a supostas irregularidades nos atendimentos, estas foram encaminhadas para a Promotoria que cuida da área da saúde.
A Associação Olhar Pelo Próximo é objeto de investigações não só no estado, mas em outras partes do país. Em Murici, Alagoas, o Conselho Regional de Medicina (CRM-AL) denunciou, em 2017, que um médico, que prestava consulta no âmbito do convênio firmado pela associação, estava oferecendo aos pacientes a compra de óculos de “empresa parceira”, que convenientemente tinha se instalado em frente ao local das consultas.
Também em Alagoas, no município de Traipu, moradores denunciaram que funcionários de óticas estavam realizando as consultas no lugar de médicos.
No Mato Grosso do Sul, o Ministério Público concluiu investigação e entendeu ter havido comprovação de venda casada, orquestrada pela associação e pela Focus. As denúncias vieram do município de Bonito, onde a prefeitura firmou convênio idêntico ao das prefeituras da nossa região.
Lá, a Focus também se instalou em frente ao local das consultas para vender óculos. O MP-MS ajuizou, em março deste ano, ação civil pública na qual pediu o pagamento de R$ 200 mil em danos morais coletivos.
O Conselho Regional de Óptica, Optometria e Contatologia de Santa Catarina (CrOO-SC) apresentou representações aos órgãos competentes contra os atendimentos prestados pela ONG.
A entidade avaliou a forma com que foram feitas as consultas e identificou problemas que podem resultar em má-qualidade do produto final – o diagnóstico.
O CrOO-SC tem preocupação com o que considera uma falta de excelência no atendimento. O órgão recebeu informações de que, em alguns casos, quem prestou as consultas não foram médicos oftalmologistas, mas de outra especialidade.
Em Ascurra, o conselho apurou que um paciente foi atendido, durante todo o processo, apenas por homens, mas a receita que ele recebeu para comprar óculos estava assinada por uma médica.
Além disso, o CrOO-SC obteve duas receitas, teoricamente do mesmo profissional, escritas com caligrafia diferente, o que levanta a suspeita de que o profissional que fez o exame não foi o mesmo que assinou a receita de óculos.
De acordo com o conselho, há uma preocupação constante com os atendimentos realizados pela ONG, no que se refere à garantia de qualidade dos óculos.
A reportagem procurou a Associação Olhar Pelo Próximo para ouvir explicações e seu ponto de vista sobre as alegadas irregularidades. Em nota, a entidade nega veementemente as denúncias.
O documento afirma que a associação tem quatro anos de história e já atendeu mais de 500 mil pacientes, que faz atendimento humanizado, “muito do que o Estado deveria fazer por essas pessoas e não faz”.
A associação informa que atende com toda a estrutura necessária, com equipamentos para melhor investigação de patologias da visão, assim como refratores para refinamento e acuidade visual.
A Olhar Pelo Próximo credita o volume de denúncias contra si a perseguição.
“Atendemos em vários locais e em Santa Catarina sempre fomos perseguidos por esse conselho de Óptica e Optometria, que se preocupa apenas com interesses comerciais e políticos na região, então todas as denúncias se baseiam e são originárias deste conselho, que nem é considerado um órgão ou autarquia, mas em todos os momentos estivemos tranquilos de que o bom papel estava sendo feito. Fica fácil identificar isso fazendo pesquisa de satisfação por onde nos passamos”, informa a entidade, que continua:
“Pensamos que o Conselho de Óptica e Optometria deveria se preocupar com coisas mais importantes, por exemplo com óticas que fornecem exames de vista dentro da própria ótica ou estabelecimento comercial, o que é proibido por lei”.
Sobre as denúncias, a associação justifica que, em Alagoas, foi proferida sentença pelo Superior Tribunal de Justiça, no mês passado, que a inocentou das acusações, definindo que “não houve venda casada e muito menos dano à sociedade”.
Sobre o processo ajuizado em Mato Grosso do Sul, a associação afirma que ainda não foi intimada, mas garante não ser culpada das acusações de venda casada.
A entidade também nega que os profissionais que atendem não sejam médicos especializados em Oftalmologia.
“Atendemos com contrato e parceria com o Consórcio de Oftalmologia de Blumenau, fizemos e cumprimos todo contrato. O Conselho Federal de Medicina dá amplos direitos para que o profissional médico tenha autonomia de atendimentos. Então, o CrOO fala o que quer, mas sem provas”, diz a associação, que reitera: “Não existem provas de venda casada, não existem provas de dano e lesão a sociedade, justamente por que não existe”.
Para a Olhar Pelo Próximo, os atendimentos feitos nas cidades aquecem a economia, beneficiando várias óticas, e segundo a entidade o paciente é livre para escolher onde adquirir os produtos.
“Várias óticas por onde passamos foram beneficiadas. Podemos provar que o paciente tem livre arbítrio pra adquirir quaisquer produtos, próteses, colírio e óculos em qualquer local. O paciente é atendido e posteriormente faz o que bem entender”, garante a associação, que dá a seguinte explicação sobre a sua relação com a Focus.
“Sobre a Focus, são apenas parceiros o qual confiamos por ter um laboratório completo e fazer valer a qualidade, para fundamentar o resultado final do excelente atendimento que prestamos”.
A Focus Ótica também foi procurada para comentar o caso. O e-mail informado pela empresa é o mesmo que consta como e-mail da Associação Olhar Pelo Próximo.
Na resposta, a empresa nega que tenha participado do mutirão em Brusque.
“O atendimento da associação em Brusque aconteceu sem presença da Focus na cidade ou nas proximidades. Duas semanas de atendimento e várias outras óticas catarinenses na porta do atendimento fazendo aviação de receitas. Como dizer então que existe venda casada? Como dizer que somos culpados de algo de tamanha proporção?”, afirma, em nota.
No entanto, O Município confirmou que a empresa esteve em Brusque durante o período da campanha, conforme fotos enviadas por pacientes que receberam atendimento.
Além disso, imagens obtidas pela reportagem mostram que carros da empresa circularam no município mesmo após a campanha terminar oficialmente. A mais recente é datada de 9 de agosto.
O trabalho da Associação Olhar Pelo Próximo foi contratado pelo Consórcio de Saúde da Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (Cisamvi). A reportagem enviou questionamentos à diretoria do consórcio para que fossem comentadas as denúncias, assim como esclarecido como se deu essa negociação para o mutirão de consultas.
Cleones Hostins, diretor-executivo do Cisamvi, é quem presta os esclarecimentos. De antemão, Hostins rechaça as informações de que o serviço não foi feito por especialistas.
“Foi integralmente realizada por profissionais da Associação Olhar Pelo Próximo com acompanhamento de profissionais do município e do Cisamvi. Registramos que as consultas foram realizadas por profissionais médicos, habilitados pelo CRM, com autorização para trabalho em SC e com titulo de especialista em Oftalmologia”.
Segundo ele, os municípios aprovaram a realização da campanha, e definiram, em uma deliberação oficial, suas obrigações. Conforme esse documento, as prefeituras deveriam fornecer local para os procedimentos, e acompanhar a execução da campanha. Ao Cisamvi coube disponibilizar hospedagem e alimentação à equipe da Associação Olhar Pelo Próximo.
Conforme o documento, coube à própria associação custear o pagamento de despesas com equipamentos, equipe médica e transporte.
“Importante ressaltar que o convênio não prevê qualquer remuneração à Associação Olhar Pelo Próximo, ou a qualquer profissional envolvido no processo, apenas a disponibilização de hospedagem e alimentação aos profissionais da associação durante os atendimentos da campanha, e no período da campanha”, afirma o diretor-executivo.
Hostins também afirma que o Cisamvi consultou o CNPJ da associação, antes de firmar o contrato, e não havia qualquer registro de irregularidade.
Segundo ele informa, foram atendidos 6.733 pessoas nos municípios durante a realização da campanha. Diz que o custo, por vias normais, seria de R$ 679 mil às prefeituras. Com o serviço prestado pela associação, ficou em R$ 43 mil, o que representa uma economia de R$ 636 mil aos municípios
O Cisamvi informa ter aplicado um questionário para avaliar os atendimentos, e o resultado obtido foi um índice de satisfação de 99%.
A reportagem questionou se o consórcio colocou profissionais para acompanhar os atendimentos, e se recebeu denúncia de alguma irregularidade. “O Cisamvi acompanhou a garantiu o cumprimento regular de todos os trabalhos. Importante destacar que a responsabilidade de acompanhamento integral e constante foi do município”, destaca Hostins.
Ele confirmou que o consórcio recebeu, durante a campanha, um questionamento do Ministério Público de Ascurra, no sentido de que o município acompanhasse o andamento dos trabalhos e exigisse o cumprimento de todas as normativas. “O que aconteceu do início ao fim”, garante.
“O Cisamvi desconhece qualquer denúncia concreta, apenas genéricas, de supostas irregularidades ocorridas em outras regiões, formuladas pela mesma entidade, com fins comerciais. Porém, com toda a certeza, havendo a comprovação de qualquer denúncia sobre os procedimentos realizados na região, as providências legais serão adotadas, em especial sobre o cumprimento do termo de convênio firmado”, conclui o diretor-executivo.
O Município contatou também as prefeituras da região onde o serviço foi prestado, a respeito das suspeitas de irregularidades elencadas.
O secretário de Saúde de Brusque, Humberto Fornari, rechaça a existência de irregularidades. Afirma que mais de 20 pessoas da pasta fizeram o acompanhamento dos atendimentos.
Ele ressalta a importância do serviço, e afirma que, além de receitas de óculos, o mutirão possibilitou diagnósticos de câncer, glaucoma e catarata.
“Entendemos que o mutirão foi extremamente satisfatório para a população. Quem fez denúncias foram os donos das óticas. Nenhum paciente veio fazer nenhum tipo de reclamação quanto ao atendimento ou quanto ao modelo instituído”, comenta o secretário.
“Essa questão de que as óticas reclamarem que existiria uma venda casada, ‘só vou entregar a receita se comprar os nossos óculos’, isso não existiu, isso é uma falácia”, continua.
Fornari ressalta ainda, que se depender da prefeitura, esse trabalho terá continuidade.
“Já coloquei nossa disposição para que o Cisamvi, para que gente consiga fazer em outras especialidades, para que a nossa população não fique na fila de espera de dois, três anos ou mais”, conclui.
A Prefeitura de Guabiruba, por meio da assessoria de comunicação, também contesta as denúncias de irregularidades.
Segundo o município, não houve nenhum relato desabonador à conduta dos profissionais da Associação Olhar Pelo Próximo. A prefeitura relata que os profissionais da Secretaria de Saúde acompanharam os atendimentos, e que a pesquisa de satisfação feita junto aos pacientes indicou uma avaliação positiva da iniciativa.
A pasta garante que em nenhum momento foi falado o nome de nenhuma empresa aos pacientes, que receberam suas receitas e saíram livres para procurar as óticas que preferirem.
A secretária de Saúde de Botuverá, Márcia Cansian, informa que foram tomadas medidas para evitar qualquer tipo de problema.
“Durante a realização das consultas médicas, foram questionados os usuários se houve por parte da equipe algum encaminhamento específico para alguma ótica, e todos informaram que não houve esta prática”, afirma a secretária.
Segundo ela, o serviço foi acompanhado por enfermeiros, agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem e pelo fiscal da Vigilância Sanitária.
“Não houve até o momento nenhuma denúncia sobre o atendimento da associação. Foi realizado pesquisa de satisfação em praticamente 30% dos usuários atendidos em consultas médicas, e quando questionados sobre orientação de compra em ótica específica, foi unânime as respostas em informar que não houve indicação”, afirma Márcia.
A secretária afirma que o contrato foi cumprido rigorosamente, e que Botuverá tem na oftalmologia a maior demanda por consultas, já que não há nenhum especialista no município.
“Dos 697 usuários atendidos em nosso município, houve 99% de satisfação. Destes atendimentos, gerou demanda de cirurgias oftalmológicas, inclusive de neoplasia, catarata, pterígio, tratamento de glaucoma e possível transplante de córnea”, completa.