Dizia o filósofo George Friedrich Engel que todos os fatos ou personagens de grande importância na história acontecem duas vezes. Outro conhecido pensador Karl Marx achou que a frase estava incompleta e acrescentou: “a história se repete duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa”.

Lembrei desta conhecida frase após conhecer que vários municípios ao longo do país estão adotando a prática da internação involuntária para moradores de rua que tenham algum transtorno psiquiátrico ou dependência química.

Os prefeitos se amparam na lei 13840 de 2019 que autoriza a outros agentes públicos a providenciar a internação involuntária sem necessidade de ordem judicial.

Lembremos que a lei 10216 de 2001 já permitia a internação involuntária a pedido de familiares ou mesmo do ministério público e com autorização judicial (internação compulsória).

É como se pudéssemos solucionar problemas complexos com medidas simples, além do agravante de que é uma medida autoritária que passa por cima das liberdades individuais protegidas pela Constituição Federal.

Ao longo da história, as sociedades urbanas e principalmente as classes sociais mais abastadas sempre tentaram colocar em ordem a miséria e reprimir populações consideradas indesejáveis, a internação forçada destas populações é prática muito antiga.

O Bethlem Royal Hospital de Londres, popularmente chamado de “Bedlam”, o hospital psiquiátrico mais famoso da história, motivo de filmes e livros, passou para a história pela quantidade de absurdos e ilegalidades que lá se praticavam.

A instituição foi criada em 1247 por uma ordem de monges e inicialmente acolhiam moradores de rua, anos depois começou a dar amparo aos “loucos” de tal forma que no ano 1300 já era considerado um hospital e pouco depois um hospital de doenças mentais.

Nessa época a administração do hospital passou para a Coroa da Inglaterra. No começo do século XV a grande maioria dos internos eram “loucos” e se torna conhecido como o mais famoso hospital psiquiátrico da Europa.

O tratamento a que eram submetidos os pacientes era totalmente desumano, muitos ficavam acorrentados anos a fio, as camisas de força começaram a ser usadas muito depois.

Até o século XVII seus pavilhões viraram um verdadeiro zoológico humano já que, pagando algumas moedas, as pessoas podiam visitar e presenciar o sofrimento e os horrores do que lá acontecia, foi um programa preferido de muitos londrinenses nos finais de semana.

O Bethlem Royal Hospital existe até hoje, mudou algumas vezes de localização e se encontra atualmente em Beckenham, ao redor de Londres.

É atualmente uma instituição respeitada, porém no imaginário popular não se livrou totalmente dessa associação com um passado de terror. A palavra “bedlam” entrou no dicionário da língua inglesa como sinônimo de confusão.

Tivemos no Brasil nosso Bedlam tupiniquim, se trata do conhecido Hospital Colônia de Barbacena, fundado na cidade de Barbacena em 1903 chegou a ter um conjunto de sete edificações das quais três estão atualmente em atividade.

Criado como um hospital para doentes com tuberculose, foi se transformando em instituição psiquiátrica. Desde sua criação ofereceu aos pacientes um tratamento indigno e desumano que somente veio a conhecimento público em 1980 quando após visitá-lo, o psiquiatra italiano Franco Basaglia declarou quer era um verdadeiro campo de concentração nazista.

Para o ano de 1960 a Colônia Barbacena tinha mais de cinco mil internos. Estes “pacientes” foram se acumulando ao longo de várias décadas, bastava você ser um desafeto de um prefeito, vereador, promotor ou qualquer pessoa com certo poder político ou econômico que sua chance de ser encaminhado para a colônia era grande.

Uma vez internado, as potentes doses de psicotrópicos, os castigos físicos, os eletrochoques, a fome, a separação de sua família e da sociedade transformavam essa pessoa em um verdadeiro doente mental.

Diz o ditado que “de músico, poeta e louco todos temos um pouco”, sendo assim, todos estaremos em perigo de uma internação involuntária ou compulsória

Em pouco tempo o hospital estava lotado com opositores dos políticos de turno, homossexuais, mendigos, pessoas sem documentos, prostitutas, mães solteiras, esposas que tinham sido trocadas por uma amante, etc. Qualquer pessoa considerada desagradável ou “diferente” tinha altas chances de ser internada.

Quantos autistas foram internados em Barbacena?

Na prática, era o contrário do que deveria ser um sanatório mental, mesmo a mente mais sensata e equilibrada não resistiria aos tratamentos mengelianos administrados nessas épocas em Barbacena.

Os pacientes eram levados à colônia num trem que era chamado de trem dos doidos, a própria cidade de Barbacena ficou conhecida como cidade dos loucos.

Calcula-se que durante nove décadas mais de 60 mil brasileiros morreram nesse hospício, seja de fome, de frio, de disenteria ou intoxicados com altas doses de psicotrópicos.

A maioria dos pacientes deambulavam completamente nus e dormiam no chão de concreto. Essa história de horror que perdurou ate os anos 90 está vividamente descrita no livro Holocausto Brasileiro escrito pela jornalista Daniela Arbex e publicado em 2019.

Se o Brasil teve sua versão de Bedlam representada na Colônia Barbacena, Santa Catarina também teve sua própria Barbacena na conhecida Colônia Santana inaugurada no município de São José em 1941 pelo mesmíssimo presidente Getúlio Vargas, a instituição passou a ser administrada pelo estado em 1971.

Criado para abrigar 300 pacientes, chegou a superar 1700 internos nas décadas dos 60 e 70. As condições em que viviam eram semelhantes ao que acontecia em Barbacena, foi rotulado como um “depósito de gente”.

Na década dos 90 havia ao redor de 1200 pacientes internados, muitos não tinham doença mental nenhuma. Uma pesquisa mostrou que existiam ao redor de 120 pacientes internados por ter “epilepsia” e ao mesmo tempo muitos pacientes tomavam medicamentos antiepilépticos sem ser portadores da doença.

As famílias levavam os pacientes para internar para se livrar dos mesmos e durante muito tempo sequer existia uma triagem para saber da necessidade da internação.

A Colônia Santana, de triste lembrança para muitas famílias foi extinta em 1996. O tratamento ambulatorial e hospitalar de doentes psiquiátricos foi assumido pelo Instituto de Psiquiatria (IPQ).

Como a vida imita a arte e vice-versa, a literatura tem produzido excelentes relatos sobre as atrocidades cometidas em instituições deste tipo.

Um dos mais conhecidos é o livro do escritor espanhol Torcuato Luca de Tena “As linhas tortas de Deus” onde a protagonista se interna voluntariamente para poder elucidar um crime e descobre que ela própria é portadora de Paranoia, ficando internada por longos anos na instituição.

Diz o ditado que “de músico, poeta e louco todos temos um pouco”, sendo assim todos estaremos em perigo de uma internação involuntária ou compulsória. Não podemos cair na tentação de criar soluções simplórias para problemas complexos.