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SPLEEN: A construção da capa

O processo de construção de um livro onera bastante tempo, pesquisa e dedicação. É um dueto de escrever, cortar, pensar e repensar. Como em qualquer outra profissão, quanto maior o exercício desta experiência, mais refino se consegue. Cada um desenvolve a sua maneira, os seus “passo-a-passos”:

“Através de uma experiência pessoal, informação adquirida ou estímulo absorvido, surge um tema, que passa a ser interessante abordar, ou não. Inicia-se um período de pesquisa, para tatear os cenários, as linhas de raciocínio, os contextos, as referências literárias. Aos poucos os rabiscos vão ocupando lugar ao papel, e o texto vai ganhando corpo. O processo de pesquisa só é interrompido definitivamente quando concluída a obra. Junto ao exercício da escrita propriamente dita, acontece o pensar “gráfico”, vão se imaginando cores, figuras, que poderão compor o cenário perfeito e que tenham a capacidade de auxiliar os leitores a se transportarem para o mundo criado pelo enredo. A capa deve ser a chave que remeta diretamente ao que o escritor propõe com a obra. E posso assegurar que tantas vezes esta criação é mais difícil do que o processo de escrever…”

Retrato de menina, por Everett Millais (1857)

Construir a capa do livro Spleen exigiu bastante: pesquisa, “tato” com a arte, poder de sintetização, muito da força e muito da delicadeza. Nesta construção gráfica se tinha o compromisso em retratar o especifico estado de “alegria e tristeza”, do “quente e frio”, “querer viver, querer morrer”. Essa linha tênue entre uma margem e outra do rio.

Aos poucos, duas pinturas tornaram-se especiais no sentido de cumprir com o proposto pela obra. Uma delas, que surge em primeiro plano, é Sophie, com seus olhos grandes e fixos, ligeiramente arqueados para baixo, sua boca carnuda e rubra, rubra como suas bochechas salteadas na face marcada pela brancura, seus cabelos jogados sobre seus ombros e, no centro de sua roupa, os “amores-perfeitos”. Entende-se porque esta, seria o mais famoso retrato da jovem Sophia Margaret Gray. A obra foi pintada durante o movimento da arte pré-rafaelita que dividia espaço com o ultrarromantismo na literatura.

Ophelia, por Everett Millais (1851-1852)

A composição que serviu de plano de fundo para a jovem Sophie foi construída com base em outra pintura, agora a de Ophelia. O retrato de outra jovem, agora a da peça de Hamlet, escrita por Shakespeare. O mesmo sentimento que atrai e aproxima uma obra, das outras. “À sua volta, uma rica e densa vegetação, com árvores e flores de várias espécies. A vegetação é densa, composta por árvores como o salgueiro, troncos, urtigas, algas, capins e folhas e não permite a entrada da luz. As flores são pintadas meticulosamente e como são fiéis às originais, podem ser facilmente identificadas. Há rosas, lírios-d ’água, ranúnculas, margaridas, amores-perfeitos e lisimáquias e uma colar de violetas que envolve o pescoço de Ofélia. Essas flores são citadas no texto de Hamlet e possuem um simbolismo ligado a Ofélia. A simbologia das flores era um recurso bastante utilizado na época. As rosas corresponderiam à juventude, amor e paixão. As violetas, à fidelidade. As margaridas representariam a inocência. As ranúnculas, ingratidão. O amor-perfeito, pensamento ou amor efêmero. As lisimáquias estão associadas ao formato fálico. Dentre a vegetação, o chorão ou salgueiro representaria o amor abandonado, enquanto a urtiga, a dor. Outras flores não constam do texto literário e foram acrescentadas por Millais, como os miosótis azuis ou não-me-esqueças, cuja simbologia está no próprio nome, as barbas-de-bode, que representam a futilidade, os adonis e as fritilárias, que simbolizam o sofrimento e a papoula vermelha com semente negra, que representa o sono e a morte. No entanto, essas flores estão quase murchas, sem o viço das flores recém colhidas, talvez para representar a efemeridade da vida de Ofélia, ceifada no esplendor da sua juventude. Um último aspecto que merece ser destacado é a figura do pássaro pintado no canto esquerdo superior da tela, entre os galhos do salgueiro, chamado robin. Trata-se de um pequeno pássaro marrom, com cabeça e peito vermelhos, que pode simbolizar a loucura de Ofélia, traduzida por seu canto e o vermelho, a paixão, podendo ser entendido como a perpetuação do canto e da voz de Ofélia mesmo depois de morta, através desse pássaro”.

 

O mundo que se esconde por detrás da obra principal, raramente é investigado, embora, em muitos casos, seja tão ou mais interessante que a primeira. O escritor que reconhece o potencial de uma capa, enriquece sua obra, tanto quanto, se enriquece a leitura pelo público.

 

Que seja corriqueiro o questionamento:

“quais obras estão por detrás da obra?”

 

Méroli Habitzreuter – escritora, pintora e ativista cultural