Uomo selvático – o Pelznickel dos Trentinos?
Em uma das viagens que fiz a Itália, visitei o Museo Etnográfico Trentino San Michele – METS, um riquíssimo museu das tradições e costumes do povo trentino, localizado na Província Autônoma de Trento, no nordeste da Itália. Lá me deparei com um “Uomo Selvático” – o homem selvagem que, sob o ponto de vista físico, […]
Em uma das viagens que fiz a Itália, visitei o Museo Etnográfico Trentino San Michele – METS, um riquíssimo museu das tradições e costumes do povo trentino, localizado na Província Autônoma de Trento, no nordeste da Itália. Lá me deparei com um “Uomo Selvático” – o homem selvagem que, sob o ponto de vista físico, fez com que eu lembrasse do Pelznickel. Meu amigo Renzo Maria Grosselli, pesquisador, escritor e o maior historiador da imigração trentina para o Brasil que conheço, nos acompanhava na visita ao museu e explicou que o Uomo Selvático é uma personagem mitológica das montanhas, principalmente dos Alpes onde existem os lados italiano, alemão e francês.
De acordo com Grosselli, o nome comum do personagem é Uomo Selvático, e nos vários dialetos italianos é conhecido como o “Om Selvadegh”, “Om Salvarec”, “Omm Salvadeg”, mas cada terra, cada lugar, cada vale, pode ter um nome especial para ele. No Trentino, por exemplo, ele é chamado como Salvanèl, Salvanèlo, Berlich, Berlicchete, Mazaròl, entre outros. Grosselli ainda explicou que, normalmente, o Uomo Selvático é um homem coberto de vegetação (como o Pelznickel, observação minha), ficando de fora só o rosto e as mãos (só as vezes, e em certos lugares específicos, na mitologia ele pode estar vestido com trajes vermelhos). Porém, ele simplesmente pode estar encoberto com os próprios cabelos e pelos, como estava o Uomo Selvático exposto no Museo Trentino.
Pesquisando um pouco, aprendi que o Uomo Selvático geralmente é considerado o iniciador de atividades fundamentais para as microeconomias individuais, nas quais desempenha de fato o papel de herói cultural. As narrativas do folclore testemunham que, depois de ter ensinado as diferentes técnicas das que foi guardião – a arte da produção leiteira e a conservação dos seus produtos, a agricultura com as suas técnicas e saberes, a apicultura, a metalmecânica, a arte mineira, etc. –, fugiu para o ambiente natural, principalmente dos Alpes, porque foi vítima das piadas e da incompreensão do homem dito “civilizado”. Várias gravuras do século XVI já o apresentavam na “Caça ao Homem Selvagem”. Desde então este ser foi definitivamente relegado para além da periferia da civilização.
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Uma lenda do Vale de Mocheni (Valle dei Mocheni – talvez um dos vales menos conhecidos do Trentino, mas rico em natureza), conta que o Uomo Selvático tinha uma aparência assustadora. Talvez ele se parecesse com o deus celta Cernunno – o deus com chifres de veado, uma criatura viril, com braços musculosos e rosto altivo, com a cabeça adornada com um chifre, mas que no final das contas era bondoso e sempre disponível. Foi o Uomo Selvático, movido pela pobreza do povo do vale, que ensinou os camponeses a fazer manteiga e a preparar queijo e ricota, mas, apesar disso, nem todos lhe ficaram gratos. Os afrescos e esculturas que a reproduzem mostram-nos uma máscara de serenidade aparentemente indiferente, atrás da qual talvez os segredos da natureza estejam escondidos e preservados, protegidos de vãs curiosidades.
O Uomo Selvático é o elemento positivo da Montanha”, continua explicando Grosselli. Ele tem o mesmo espirito da Montanha, representa o espirito simples e duro dela. Sem “fricotes”, sem o supérfluo. Ele é a essência, que as vezes também é dura e brutal. Mas é sábio, tímido e nervoso. No Trentino, as mães alertam as crianças, dizendo: “se comporte, olha que o Berlicchete vai chegar”. Esse dizer também lembra o tempo antigo, quando aqui se dizia para as crianças: “se comporte, ou o homem do saco vai te pegar”. Ou ainda hoje, em Guabiruba: “se comporte, ou o Pelznickel vai te pegar”.