Hoje, por enquanto, fica a íntegra do texto do doctor Jonas K. Sebastiany sobre a tragédia do último domingo. Outras dívidas bloguísticas, penduradas desde o último final de semana, serão pagas em breve.
Boate Kiss, o beijo da morte
Quando fui informado que havia sido convocado a prestar serviço militar como médico em Santa Maria, fiquei revoltado. Afinal, estavam sendo frustrados meus planos de fazer residência médica em Porto Alegre para ser obrigado a viver num caldeirão no verão e num freezer no inverno. Havia estado nesta cidade pela primeira vez aos 12 anos de idade, quando fui despedir-me de um grande amigo de infância que estava com câncer no cérebro, e que faleceu na minha frente, minutos depois de ter me reconhecido. Foi minha primeira experiência com a morte. Via Santa Maria como a cidade que “roubou” meu irmão, cinco anos mais velho, que lá foi cursar medicina quando eu tinha apenas 14 anos, hora em que eu mais precisava de alguém que me ensinasse quase tudo da vida.
Por tudo isso, eu dizia para todo mundo: se tem alguma coisa que eu nunca farei será comprar um Chevette e morar em Santa Maria. Pois, de uma hora para a outra, me vi indo de Chevette morar na “Boca do Monte”. Tinha duas formas de encarar a situação: ou passava um ano inteiro indignado ou, já que estava mesmo indo para o inferno, aproveitava para abraçar o diabo! Resolvi que o que viesse seria lucro!
Chegando na cidade com este espírito, sem grandes expectativas (na verdade sem nenhuma!) passei a encarar cada dia sem defesas, relaxado, sem objetivos predeterminados. Muito provavelmente, esta tenha sido a condição que me permitiu experimentar a alma desta cidade tão intensa, de tantos contrastes climáticos e nuances comportamentais dentro do universo da cultura gaúcha.
foto: Safella/Deviantart
Em matéria de efervescência acadêmica, penso que Santa Maria está para o RS assim como Ouro Preto está para MG e Campinas está para SP. É um dos maiores pólos universitários do país e o segundo maior contingente militar do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro. Esta mistura de acadêmicos e militares vindos de todos os cantos, imagem um tanto quanto surreal para quem viveu os tempos de confrontos entre estes dois grupos na época da ditadura militar, dá a este município situado no centro geográfico do RS, características únicas de mescla harmoniosa de ideologias e condutas. Tanto que, na tragédia que estamos vivenciando, haviam tanto estudantes quanto militares na fatídica boate. Horrível pensar que os mesmos estudantes que dias antes se espremiam num ônibus lotado indo para o campus, terminaram suas vidas espremidos lutando pela vida num chão infecto. Imaginar que os estudantes de engenharia mortos poderiam estar hoje pesquisando novos mecanismos anti-incêndio. E tantos outros profissionais que poderiam fazer muita diferença no nosso futuro, tanto quanto já faziam como pessoas amadas por seus familiares e amigos.
Morei na mesma rua onde hoje existe a boate Kiss e onde tive a oportunidade de construir uma das mais importantes amizades da minha existência. Aprendi a amar a cidade onde passei um dos melhores períodos da minha vida e que muito ensinou sobre disciplina e liberdade a tantas gerações. Disciplina e liberdade que, definitivamente, não encontraram seu ponto de equilíbrio nos múltiplos fatores que levaram à tragédia da boate Kiss. Nos resta a mais profunda tristeza pelas perdas irreparáveis, pelas feridas que jamais cicatrizarão, pela revoltante dor do beijo da morte dilacerando os corações de todos os gaúchos.
Dr. Jonas Krischke Sebastiany / CREMESC: 8.104
Médico do Trabalho /[email protected]