Casos de racismo e injúria racial aumentam em Brusque em 2022: veja números e relatos dos crimes
Prática dos crimes neste ano teve um aumento de 575% se comparado aos anos de 2020 e 2021
Prática dos crimes neste ano teve um aumento de 575% se comparado aos anos de 2020 e 2021
Em Brusque, segundo o sistema integrado da Polícia Militar e da Polícia Civil, já foram registrados neste ano 22 boletins de ocorrência por injúria racial e outros cinco por racismo. O número cresceu em relação aos anos anteriores.
A Polícia Militar informou ter registrado somente um caso em 2020 e três em 2021. Somados os casos dos dois anos e comparando eles com os números registrados até o dia 17 de outubro de 2022, o aumento é de 575%.
Números de casos registrados em Brusque de O Município
A injúria racial e o racismo são duas das práticas criminosas comuns no país. Santa Catarina, por exemplo, é recordista quando o tema é injúria racial. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, o estado teve o maior registro de casos no Brasil. Foram 2.865 ocorrências registradas, isso representa uma média de 7,8 registros diários.
De agosto de 2018 a agosto de 2021, por exemplo, 133 casos de injúria racial chegaram ao poder Judiciário catarinense. Neste mesmo período, 122 pessoas foram condenadas pelo crime.
Em 2022, alguns casos ganharam repercussão. Na noite do dia 23 de fevereiro deste ano, um homem foi detido após invadir uma casa, colocar fogos em objetos, quebrar o cano de água da rua e ainda fazer insultos racistas contra a vítima. O caso ocorreu no bairro São Pedro, em Brusque. Na ocasião, ele ofendeu o morador da casa chamado-o de “macaco, pretinho e borracha de rodo”.
No dia 4 de julho, também deste ano, um outro caso chamou a atenção dos moradores do município. Na ocasião, um gerente de uma oficina mecânica em Brusque foi vítima de injúria racial. O caso foi registrado no bairro São Pedro, e diversas pessoas presenciaram o ato.
Segundo o gerente, de 49 anos, o homem era cliente da oficina e, após um serviço, voltava constantemente ao local alegando problemas mecânicos. Naquele dia o cliente foi novamente ao local e, conforme a vítima, estava bastante alterado.
Em discussão o homem teria dito: “esse preto não consegue deixar o serviço certo” e “esse negro não sabe trabalhar”. Neste momento, testemunhas falaram para o gerente chamar a polícia e registrar as ofensas. A Polícia Militar foi até o local, conversou com os envolvidos e os levou para delegacia.
O trabalhador é natural do estado de São Paulo, mas se mudou para Brusque quando era criança. Já o cliente, de 45 anos, é natural de Portugal. Ele estava na oficina com a esposa, que é brasileira.
No ano passado, o caso de maior repercussão envolveu o Brusque Futebol Clube. Na noite de 28 de agosto de 2021, a equipe empatou com o Londrina em 0 a 0 no estádio Augusto Bauer, pela 21ª rodada da Série B do Campeonato Brasileiro. Porém, o resultado da partida ficou em segundo plano após um caso de racismo ter sido registrado no jogo.
De acordo com a súmula da partida, por volta dos 45 minutos do primeiro tempo, um dirigente do Brusque gritou “vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha” para o jogador Celsinho, do time visitante. Por volta deste minuto da partida, Celsinho e vários colegas do banco de reservas começaram a conversar com a arbitragem, revoltados, enquanto tentavam identificar responsáveis.
Como desfecho, a Quinta Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) puniu o Brusque em R$ 60 mil e perda de três pontos no Brasileirão Série B. Porém, após a decisão, o Brusque entrou com um recurso e recuperou os pontos. Já a multa foi mantida e também foi ordenado o afastamento do dirigente acusado de cometer o crime por 360 dias, além de multá-lo no valor de R$ 30 mil.
Para a vereadora de Brusque, Marlina Oliveira, única negra no poder Legislativo, os números dos casos indicam uma série de fatores importantes presentes na sociedade atual. Para ela, além do acesso a informação ser mais fácil, um dos passos mais importantes é a própria denúncia.
“O fato de você saber o que sofreu, de poder dar nome ao crime praticado, é de suma importância. Isso tudo permite que possamos discutir assuntos como estes em âmbitos e espaços importantes como a Câmara de Vereadores, onde já existem fóruns sobre o tema. Os números dão coragem”, relata.
Marlina é a sexta mulher a ocupar uma cadeira na Câmara de Brusque e também é a primeira negra da história a conseguir o feito. Como parlamentar, ela enxerga a política como uma das formas mais eficientes de conscientizar as pessoas sobre o assunto, mas faz alertas.
“A cultura e a educação são braços importantes para que a conscientização ocorra. É preciso investir mais em diversidade cultural e educacional no município. A lei hoje prevê ações sistemáticas e obrigatórias de ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, porém, conseguimos identificar que essas ações sistemáticas não acontecem como deveriam. O que existe são ações pontuais, isso por si só já é um equívoco”, afirma.
Se a regra legislação fosse seguida, Marlina entende que a população de Brusque teria outras formas de se relacionar com as diversidades e diferenças étnicas, religiosas e políticas, o que segundo a vereadora, diminuiria as ações violentas.
Nascida em Erechim, no Rio Grande do Sul, Marlina chegou a Brusque e em pouco tempo assumiu uma posição de liderança como coordenadora pedagógica, função que teve que ser aprovada em concurso para exercer. Durante sua trajetória, admite ter sofrido resistência em forma de racismo estrutural, expressão que demorou um tempo para começar a utilizar.
“É muito difícil aceitar pessoas negras em lugares de poder, de tomada de decisão e de liderança. Logo, qualquer pessoa negra que ocupar esses espaços, assim como eu ocupei e ainda ocupo, causam desconforto para algumas pessoas. Isso diz muito sobre esse pensamento colonial e racista que estrutura e organiza a sociedade brasileira”, diz.
Para Daíra Andréa de Jesus, mestre em Direito das Migrações Transnacionais e professora do curso de Direito da Unifebe, o racismo está naturalizado e permeia um cotidiano de piadas, violência, encarceramento, invisibilidade e num cotidiano no qual as profissões ou cargos mais atraentes raramente são ocupados por pessoas negras.
“A população racialmente identificada sofre com particularidades díspares, imortalizadas por processos colonizadores. A ferida colonial não cicatrizou e ainda há “algemas invisíveis” e muita dor”, diz a advogada.
O DJ Blade e o cantor V7tinho são dois dos vários artistas que atuam no cenário do rap e hip hop em Brusque. Identificados com as causas antirracistas, os dois fazem da arte um movimento que contesta e combate os crimes raciais.
Nascido em um bairro considerado simples no município de Fraiburgo, Adrian Christian Dos Santos, de 25 anos, possui Blade como nome artístico. Quando se mudou para Brusque, aos 12 anos, relata que a adaptação não foi fácil e que sentiu preconceito por parte de algumas pessoas.
“Sinto que por ter um sobrenome simples, eu era julgado. A separação sempre foi nítida para mim. Se você tinha dinheiro, estava nos grupos populares da escola e, se não tinha, era preciso se contentar ou se esconder”, relata.
Questionado se já sofreu racismo, Blade conta que costumava ouvir piadas sobre o seu cabelo e, por causa disso, chegava a raspar a cabeça. O artista também recebia conotações racistas dos colegas de sala e relatava que ouvia frases do tipo: “tinha que ser preto” e “esconde as coisas que o neguinho chegou”.
“Nós ainda sofremos racismo na cidade. Pouco tempo atrás eu estava acompanhado de outros amigos negros quando, de repente, um homem começou a nos xingar por causa da nossa cor. Ele cuspiu em uma amiga nossa. O episódio foi terrível e isso jamais sairá da minha mente”, conta o DJ.
“O racismo muitas vezes te destrói por dentro e você fica sem reação. Nunca levei adiante casos para a justiça pois entendo que ela é muito falha nessa questão. O peso de você ter que esperar por ela e no fim não receber nada é mais triste que o próprio caso. Isso me desgasta muito”, conclui Blade.
Victor Alexandre Medeiros tem 20 anos e usa V7tinho como seu nome artístico. O cantor acredita que o racismo começa por meio de piadas e comentários maldosos, coisas que o fizeram sentir que era visto de forma diferente. O artista veio de São Paulo no ano de 2007, momento em que a família procurava por um lugar com mais segurança e um custo de vida melhor.
“Vejo os números e penso que algumas pessoas estão passando por um processo de educação. Além de forma cultural, elas estão aprendendo com o fator musical. O processo demora um tempo e por isso acredito que ainda temos casos criminosos como estes”, diz.
“Não existem respostas que te ensinam como superar um ato racista. Isso é algo que nos marca e nos deixa uma cicatriz. Nunca busquei ajuda por meios legais, para mim, sempre há um lado que é escolhido”, complementa V7tinho.
A presença das primeiras famílias negras em Brusque remete aos anos em que ocorreu a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
“Nunca existiu a escravização de negros africanos na colonização de Brusque. Agora, é fato que pessoas negras costumavam sair das regiões de Tijucas e Penha para vir ao interior. Todos eram grupos isolados e por isso não tínhamos clareza sobre quem eram essas pessoas”, relata o historiador Aloisius Carlos Lauth.
“É claro que houve algum momento de divergência entre os europeus e os negros no município. Porém, desconhecemos estudos que falam sobre manifestações de pessoas negras em Brusque. A Lei Áurea, por exemplo, não foi comemorada por aqui. Sobre a presença deles na sociedade brusquense, acredito tudo tenha começado no período da Primeira Guerra Mundial”, complementa.
Imigrantes que hoje moram em Brusque citam que a xenofobia pode estar atrelada aos crimes de racismo e injúria racial. Sobre o tema, Aloisius lembra que, ao final da década de 80, tendo ressurgido a têxtil e a crescente mecânica, desenhou-se o projeto de emprego e renda no município.
“Um ex-prefeito de Brusque fazia propaganda aberta da cidade e convidava pessoas de outras localidades a virem residir na cidade. Os primeiros migrantes internos foram os baianos, que encontraram emprego fácil, de baixo nível de qualificação, os quais estavam sendo rejeitados pela juventude operária”, conta.
“Isto incomodou quem buscava emprego e não o encontrava na indústria têxtil local, atribuindo a culpa aos que vinham de fora. No período do sesquicentenário, foram vistas as primeiras manifestações contrárias à vinda de nordestinos e baianos para a cidade, com cartazes e panfletos tentando expulsá-los”, relembra.
Para Daíra, as migrações interferem na dinâmica cultural, social, demográfica e econômica da sociedade e permitem que espaços sejam cada vez mais coloridos e diversificados. Os migrantes, assim como a população nacional, estão sujeitos a iniciativas discriminatórias, a depender do fenótipo.
“As pessoas são rotuladas pela opção religiosa, por sua cultura, suas vestimentas e penteados. Quanto à população negra, há um longevo paradoxo entre a cor da pele e a visibilidade social”, completa a advogada.
No Brasil há várias formas de denunciar racismo e injúria racial. É possível ser ouvido presencialmente, por telefone e online. Confira abaixo, as maneiras disponíveis de atendimento:
Presencial (emergência)
Se o agente registrar a denúncia como um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), é possível insistir na ideia de que o crime deve ser investigado por meio de um inquérito, mostrando que ele não é de menor potencial ofensivo.
Ministério Público
Quando o crime for atingir uma comunidade ou coletividade negra, não se restringindo somente a uma pessoa, é possível procurar o Ministério Público pare realizar uma denúncia formal.
Entre as situações que podem ser denunciadas estão: ações governamentais com conteúdos racistas, grupos na internet e sites que realizam apologias ao racismo, propagandas com conteúdos discriminatórios e publicações e livros racistas.
Denúncia por telefone
É possível realizar denúncias por telefone através do Disque Direitos Humanos (100). Também podem ser contatados a Polícia Militar (190) ou via aplicativo PMSC Cidadão.
Racismo e injúria racial são crimes diferentes e possuem penas diferentes. A diferença entre os dois é a direção do comportamento. Na injúria racial, a ofensa é dirigida contra um indivíduo específico, enquanto no racismo a ofensa é dirigida contra um coletivo, como uma raça inteira, sem ofensa específica.
“Como o crime de racismo é considerado inafiançável e imprescritível, na prática, condutas que mereciam ser classificadas como racismo, acabavam sendo consideradas como injúrias raciais, para as quais não se considerava o critério de inafiançabilidade ou da imprescritibilidade. Isso pode mudar, considerando o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2021, por meio do Habeas Corpus (nº 154.248), reconheceu que o crime de injúria racial deve ser interpretado como racismo”, complementa Daíra.
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