A famosa frase “de perto ninguém é normal” da música de Caetano Veloso “Vaca Profana” (um clássico na voz de Gal Costa, falecida recentemente) é realmente confirmada pela neurobiologia e pela psicologia cognitiva.

Há mais de três décadas atendendo pacientes com as mais diversas queixas e sintomas também não tenho nenhuma dúvida de que somos todos diferentes ou como relata Rosa Montero, famosa escritora espanhola, no seu último livro “O perigo de ser normal” (em espanhol: El peligro de estar cuerda), todos somos raros.

Ao longo da vida escutei o relato de pacientes com inúmeros sintomas que por tornar-se repetitivos e até compulsivos começavam a afetar de maneira significativa sua vida, seu desempenho social e no trabalho.

Um adolescente relatando que parece que ele está fora do seu corpo, com a sensação que o corpo não é dele.

Uma senhora de meia idade dizendo que não pode entrar na sua cozinha porque tem medo de facas, ela tem a certeza que se pegar uma faca vai agredir alguém e cometer um crime.

Um senhor que de forma totalmente involuntária solta palavrões ao conversar com as pessoas.

Uma senhora idosa que guarda sua roupa dentro de uma geladeira (desligada) porque é a única forma que não entre a poeira.

Um homem quarentão que há mais de 20 anos fazia testes trimestrais para HIV porque esse “perigo” invade sua mente continuamente.

A diversidade é estonteante e até inimaginável, no seu íntimo cada um guarda ideias e sentimentos que por não condizer com as convenções ou com a realidade prefere esconder ou manter em segredo.

As neurociências têm avançado bastante no entendimento tanto dos sentimentos quanto das emoções, há um consenso que aquilo que durante décadas chamamos de “alma” tem uma base neurobiológica, uma base orgânica que pode ser identificada mas sobre a qual ainda há muito para pesquisar e aprender.

Aquela ideia de que somos a única espécie que está composta por uma parte material, o corpo, e uma parte imaterial, o espírito, alma ou mente não se sustenta à luz dos conhecimentos atuais.

Uma boa introdução a esse tema é o livro “Homo Biologicus” do psiquiatra Vincenzo Piazza.

Centenas de descobertas nas últimas décadas apontam para uma base biológica da “alma” ou do “espírito”, Piazza explica que não é a alma que se torna obsoleta e sim a sua imaterialidade, esse reconhecimento poderia ser um dos atos mais úteis já realizados por nossa espécie, muitas terapias empíricas estariam condenadas a desaparecer.

Saber que tanto corpo quanto a “alma” tem uma base neurobiológica ajuda muito para entender essa variedade infinita de comportamentos, manias e diferenças que existe entre todos nós.

É bem conhecido que mesmo gêmeos idênticos podem ter personalidades e comportamentos muito diferentes mesmo que teoricamente tenham genomas idênticos.

A genética explica que fatores ambientais podem modificar (ativando ou desativando) nossos genes, dessa forma aquilo que já era único ao nascer torna-se ainda mais raro e exclusivo ao longo de uma existência.

O livro de Rosa Monteiro analisa que existem também muitas semelhanças em grupos de pessoas como por exemplo a classe dos artistas.

Muitas pesquisas já demostraram que há uma necessidade vital daqueles que tem dons artísticos de expressar sua arte.

Um escritor não conseguiria ser feliz sem poder se expressar através da escrita, um pintor sem produzir seus quadros, um músico sem tocar suas composições, um dançarino sem poder dançar.

Além disso há algumas particularidades entre a classe artística, como a tendência para a dependência química.

O uso de drogas seria de grande utilidade para poder silenciar ao “eu consciente” que vive sussurrando no ouvido do artista: não podes, não sabes, não vais conseguir, és ridículo, etc.

Se as drogas ajudam para o aparecimento da veia criativa não devemos esquecer que no meio e longo prazo destroem e matam.

A lista de drogas usadas ao longo da história por escritores, músicos e artistas plásticos é enorme.

A droga preferida dos escritores sempre foi o álcool. Cinco dos nove prêmios Nobel de literatura norte-americanos foram alcoólatras inveterados, entre eles Hemingway e Faulkner.

Se teoricamente o uso de álcool pode liberar a criatividade de um escritor talentoso é verdade também que vai piorar muito o texto de um escritor medíocre.

Se na infância e na juventude já podemos distinguir a incrível variedade de comportamentos da espécie humana é na velhice que tudo pode ficar imprevisível.

Após seis décadas de vida o corpo já sente o desgaste do envelhecimento e do aparecimento de doenças e como se isso não bastasse há o perigo de sermos acometidos por doenças neurodegenerativas como a Doença de Parkinson e a Doença de Alzheimer.

Qual é o papel da sociedade como um todo e da medicina em particular em relação a essa diversidade de comportamentos que muitas vezes são rotulados pejorativamente como “doenças”?

A resposta é que além da compreensão desta imensa diversidade comportamental devemos estar sempre dispostos a acolher, a sermos empáticos e solidários.

Não é verdade que as minorias devem se curvar às maiorias, todos fazemos parte de algum grupo minoritário e essas minorias existem aos milhares.

A diversidade humana é também uma vantagem competitiva para a sobrevivência da nossa espécie.