João Bugre: conheça o indígena que sobreviveu à dizimação de sua aldeia e se tornou um memorável cidadão brusquense

Único filho vivo de João, Vino Zancanaro, concedeu uma entrevista exclusiva ao jornal O Município

João Bugre: conheça o indígena que sobreviveu à dizimação de sua aldeia e se tornou um memorável cidadão brusquense

Único filho vivo de João, Vino Zancanaro, concedeu uma entrevista exclusiva ao jornal O Município

Há 120 anos, a então colônia de Brusque recebia um novo morador que marcaria para sempre a história do município. João Indaya (ou Indajá) Schaefer (ou Schaeffer), conhecido como João Bugre, foi capturado ainda criança da aldeia onde vivia. Os nomes estão entre parênteses devido a variações encontradas nos documentos pesquisados.

Indígena legítimo, nasceu e passou os primeiros anos de vida em uma tribo Xokleng na localidade do Ribeirão do Ouro, hoje parte de Botuverá.

Durante a colonização, os indígenas, pejorativamente chamados de “bugres”, eram caçados nas expedições, que consistiam na busca, captura e, muitas vezes, na matança de nativos. Os confrontos eram brutais, e raramente restavam sobreviventes para contar a história.

Único sobrevivente

Em 1905, a população colona não tolerava mais a presença dos indígenas na região. Para pôr fim à situação, foi convocado Martinho Bugreiro, um famoso matador de indígenas. Após dias de buscas, Martinho encontrou uma tribo.

O ataque ocorreu entre 23 e 26 de fevereiro daquele ano, com cerca de 80 mortes registradas. Martinho e outros 24 homens promoveram um verdadeiro massacre, restando apenas um menino: João.

O padre e escritor Dorvalino Eloy Koch, falecido em 2010, relatou: “a chacina foi completa. Comentava-se que o grupo vinha trazendo oito crianças apressadas no rancho. Com exceção de um menino de uns 6 ou 8 anos, o futuro João Indaiá Schaefer, todas as outras crianças teriam sido eliminadas durante a viagem. É bom não esquecer: todo caçador, inclusive o de índios, gosta de exagerar vantagens”.

Grupo comandado por Martinho/Acervo de Alcindo (neto de Martinho)

Adoção

A criança, de nome indígena desconhecido, foi adotada pelo casal Maria e Vicente Schaefer, que na época era superintendente de Brusque. Há rumores de que uma menina também teria sido capturada junto do menino, mas não há confirmação. Segundo relatos locais, ela teria morrido logo depois por não se adaptar à socialização e alimentação.

Após chegar em Brusque o menino foi chamado de João, mas o nome e a data de nascimento originais dele são desconhecidos. O que se sabe é que seus “pais adotivos” escolheram 24 de junho de 1903 como a data oficial de seu nascimento, em homenagem a São João Batista. Porém, suspeita-se que, na época da captura, João já tivesse cerca de 8 anos.

Menino Xokleng (João) sendo adotado pelo superintendente Schaefer/Acervo de Dorvalino Eloy Koch

Juventude

De físico atlético desde pequeno, João cresceu e logo se destacou no esporte municipal, vencendo prêmios em corridas e jogando no primeiro clube de futebol da cidade, o Sport Club Brusquense (atual Carlos Renaux).

Reconhecido como bom jogador, tornou-se sócio do clube, com o título de “sócio honorário e porta-bandeira”, concedido em 17 de setembro de 1919 em homenagem à sua origem indígena.

Time do Sport Club Brusquense, na década de 1920. João é o primeiro em pé, de uniforme preto/Brusque Memória

Em 1º de maio de 1924, João ingressou como tintureiro na Fiação e Tecelagem Carlos Renaux, mas sofreu um grave acidente, ferindo e queimando a perna com soda cáustica.

Permaneceu na empresa até 16 de novembro de 1945, onde provavelmente conheceu sua futura esposa, Antonia Maria Benatti. Também trabalhou como auxiliar de armazém na “Casa ABC”, da família Schaefer, entre 30 de dezembro de 1950 e 30 de janeiro de 1954.

Religião e casamento

Casou-se com Antonia, natural de Nova Trento, no dia 17 de junho de 1941. Embora não tenham tido filhos biológicos, adotaram dois meninos: Lidovino Zancanaro (Vino) e Otávio Zancanaro, ambos parentes de Antonia. Vino foi adotado aos dois anos após a morte dos pais e, por ser sobrinho de Antonia, manteve um vínculo familiar com ela.

Na certidão de casamento de João, consta que ele nasceu em 24 de junho de 1905, meses após sua retirada da tribo. Contudo, a data que aparece em seu túmulo é 1903. A certidão também confirma que seus pais adotivos eram Vicente e Maria Schaefer.

João era religioso, frequentava a missa aos domingos, era um excelente cantor e fazia parte do Coro São Luiz. Frequentava missas na Igreja Santa Terezinha e, ocasionalmente, no Centro.

Antonia Maria Benatti nasceu em Nova Trento, no dia 16 de junho de 1913, filha de Pedro Benatti e Maria Brespi (Crespi). Seus pais faleceram em 1939. Essas informações também constavam na certidão de casamento.

Centenário

Durante as comemorações do Centenário de Brusque, em 1960, João desfilou no carro alegórico “A Maloca do Bugre”, representando os povos nativos da região, ao lado de Vilmar Walendowsky. Os dois estavam trajados de vestes indígenas.

João Indaya Schaefer no desfile do Centenário de Brusque, em 1960/Brusque Memória

O momento foi marcante e as fotografias geram uma reflexão, considerando que João testemunhou o massacre de sua tribo pelos bugreiros.

João Bugre e Vilmar Walendowsky/Acervo SAB

Morte 

João faleceu de tétano em 7 de maio de 1961, menos de um ano após a festa do Centenário. Segundo a certidão de óbito, contraiu a doença por meio de uma ferida na perna, provavelmente provocada pelo acidente com soda cáustica.

Foi enterrado no Cemitério Santa Terezinha, bairro onde morava com sua esposa. Antonia Maria faleceu em 11 de janeiro de 1991 e foi sepultada ao lado do marido, no mesmo túmulo. Junto deles, estão os restos mortais de Pedro Benatti, pai de Antonia e Palmira Zancanaro, primeira esposa de Vino.

Otávio Timm/O Município

Como não tinha filhos biológicos, João deixou sua herança para Antonia Maria, que recebeu dois terrenos, ambos na rua Santos Dumont, no bairro Santa Terezinha. Também foi deixado um prédio de madeira.

Homenageado em praça

Em homenagem a João, uma praça com seu nome foi criada no local onde ele residia com sua família. A praça, localizada na esquina das ruas Santos Dumont e Jacob Knihs, foi adquirida pela prefeitura durante o mandato do prefeito Antônio Heil (1966-1970), que negociou diretamente com a viúva. A casa que estava no terreno foi transferida para o outro lado da rua, onde ainda reside Vino, aos 85 anos, com sua esposa.

O terreno tinha 979,60 metros quadrados, sendo 383,17 metros quadrados destinados ao alargamento da rua Jacob Knihs, e os 596,43 metros quadrados restantes foram usados para a construção do jardim público, que foi inaugurado em julho de 1969 e recebeu o nome de João.

Otávio Timm/O Município

Em 2012, a praça foi revitalizada e ganhou a obra “Gratidão”, de um artista brusquense. O evento contou com a presença de Vino, e uma placa foi colocada para explicar a importância da obra, que perpetuará a história de João para sempre.

Otávio Timm/O Município

Lembranças de um filho

Pedaço vivo de uma história recente, Lidovino Zancanaro, conhecido como Vino, filho adotivo de João Bugre, conversou de forma exclusiva com a equipe de reportagem do jornal O Município.

Aos 85 anos, Vino mantém-se com a vitalidade de quem não deixa a idade transparecer. A entrevista ocorreu em sua casa, que foi também o lar de João e Antônia.

A residência, anteriormente localizada na esquina das ruas Santos Dumont e Jacob Knihs, onde foi criada a praça em homenagem a João, agora está no outro lado da rua, aos fundos de uma tornearia de propriedade do filho de Vino.

Otávio Timm/O Município

Lidovino é filho biológico de Ângelo Zancanaro e Maria Benatti, irmã de Antônia Maria Benatti. O casal teve dois filhos, Maria e Vino. Em 1942, uma tragédia interrompeu a vida dos pais, deixando as crianças órfãs.

Segundo o pesquisador Marlus Niebuhr, Ângelo faleceu em 14 de agosto daquele ano, 12 dias após a esposa. “A menina foi encaminhada ao Convento, enquanto Lidovino foi adotado pela tia, que morava em Brusque. O menino, nascido em 4 de abril de 1940, foi adotado por Antônia em 1941”, explica Marlus.

Após a tragédia, João e Antônia decidiram adotar Vino. Embora tenha sido criado por João, Vino optou por não adotar o sobrenome do pai adotivo. Pouco depois, foi adotado também o primo Otávio Zancanaro, já falecido, que havia sido deixado pela mãe, Olga.

“João era um homem bom, trabalhador, e sempre fazia tudo com maestria. O que fizeram com ele foi devastador. Martinho Bugreiro era um criminoso, bandido. A história é clara sobre isso”, afirmou, visivelmente emocionado.

Segundo Vino, João era conhecido não apenas por sua origem indígena, mas também por sua habilidade como cantor. “Ele cantava em português e alemão nas missas de Santa Terezinha e do Centro”, conta.

Forte fisicamente, João carregava tambores de 200 quilos de soda cáustica com facilidade na Fiação e Tecelagem Carlos Renaux, onde trabalhou como tintureiro.

“Certa vez, uma tampa de tambor se soltou e caiu sobre suas pernas, ferindo-o gravemente. Esse ferimento nunca cicatrizou totalmente e acabou levando à sua morte”, relata.

Vino recorda que, como pai, João era presente e compartilhava histórias sobre os nativos. “Tínhamos flechas e artesanatos indígenas, mas com o tempo, essas coisas foram se perdendo”, lamenta.

Vino também menciona a amizade de João com Fanny, uma mulher de origem indígena que fez história no município. A história de vida de Fanny inspirou publicações e até uma peça de teatro.

“Frequentava a casa de Fanny diversas vezes e lá havia flechas e outros objetos. Eles se entendiam por ter a mesma origem”, diz.

Com o tempo, muitos objetos históricos desapareceram. Vino recorda uma visita de um padre que pediu emprestado um livro dado por Fanny a João, contendo imagens e anotações raras de aldeias indígenas.

“Ele nunca devolveu o livro, e até hoje sinto tristeza por isso. Também perdi uma foto de João trabalhando na Renaux, não sei como”, lamenta.

A foto mencionada por Vino é uma das que a reportagem revelou, entregando-lhe uma cópia como forma de agradecimento.

“João nunca falava muito sobre suas dores pessoais. O que viveu quando criança ninguém deveria passar. Embora sofresse em silêncio, sabia disfarçar. Esperamos que ele seja lembrado para sempre. Era um grande homem, que soube superar as adversidades que a vida lhe impôs”, conclui Vino.

Perfil de João (foto que a reportagem deu a Vino) | Acervo de Eleutério Graf

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