A questão do mal sempre foi um problema cabeludo para os filósofos. Partindo do nosso cotidiano, vemo-nos envolvidos numa trama de bem e de mal, na qual esses opostos se cruzam o tempo todo. Na maioria das vezes é mesmo difícil distinguir uma coisa da outra. O fato é que mesmo os que buscam constantemente o bem não deixam de experimentar o mal e seus efeitos, seja dentro de si mesmos ou nas suas inúmeras manifestações ao seu redor.


Uma pergunta básica para tentar compreender o fenômeno do mal é se ele existe mesmo, como algo que tem consistência, ou é simplesmente uma ausência, uma falta, uma limitação do bem. Se entendermos que o mal tem uma existência própria, teremos que admitir que ele foi criado enquanto tal, o que nos deixa em posição difícil, principalmente se cremos que o universo e tudo o que ele contém foi gerado por um Ser infinitamente bom. Santo Agostinho foi um dos primeiros filósofos a se ocupar extensamente desse problema, concluindo que o mal é apenas uma limitação. Ora tudo o que é criado é necessariamente menos que seu criador. Portanto, nada será tão perfeito quanto o Ser de onde tudo se originou. Então, tudo leva uma marca de sua própria limitação. No ser humano, a liberdade, nosso dom mais precioso, é também a porta de entrada para o que podemos fazer de pior. A limitação que a vida encontra nas plantas e animais tira deles a responsabilidade pelos seus atos. Cada ser vivo tenta sobreviver do modo que lhe apraz e lhe é possível, e mesmo quando um animal mata sem a necessidade de saciar a fome, não o responsabilizamos por esse “mal”.


Mas nossa liberdade nos dá a possibilidade de conhecer o mal e optar por ele. Diz o mito religioso que o mal começou pela inveja de Lúcifer, um anjo de luz que se rebelou contra Deus, e tem tentado, com razoável sucesso, insuflar esse mal nos humanos. Como possuímos um corpo sensível, sujeito às leis da natureza e às suas próprias imperfeições, a liberdade nos deixa sempre na berlinda, tendo que conviver o tempo todo com as escolhas que devemos fazer. Esse é o custo do “fruto do conhecimento do bem e do mal”, que, conforme a narrativa mitológica, nossos pais comeram no paraíso.


O fato é que o mal, como realidade concreta ou como falta, nos afeta cotidianamente. A violência, a corrupção, a mentira, a inveja e tantos outros males não escolhem tempo nem lugar. Quem já não quis extirpar o mal do mundo, eliminar os ladrões, corruptos, assassinos e invejosos? Essa sensação de fazer justiça marcou o sucesso do filme “Desejo de Matar”, com Charles Bronson, que lhe valeu mais quatro sequências nas décadas de 1970 e 1980, bem como tantos outros justiceiros famosos. A indignação contra o mal é justa, mas nunca é demais esquecer que também carregamos em nós sua semente, mesmo que não sejamos ladrões, assassinos ou corruptos no nível dos que aparecem nos noticiários de TV. Estamos fadados a viver entrelaçados com a justiça e a injustiça, o egoísmo e a solidariedade, o vício e a virtude. A humanidade, independente de todas as filosofias, religiões e mitos, convive com essa realidade desde seus primórdios. Que possamos ser trigo no meio do joio, denunciando o mal fora, mas também dentro de nós, porque se há um mal que devemos tentar extirpar, é aquele que carregamos conosco, nas nossas limitações e escolhas mal feitas.