Vou ser repetitiva, sim, não quero nem saber. Velhos bons tempos em que Chico Buarque era apenas o Chico. E era praticamente uma unanimidade nacional. Velhos bons tempos em que ele não tinha sido capturado pela polarização política ridícula dos dias de hoje, que rende um monte de ódio nas redes sociais – e na vida.

Não fosse essa falta de se abrir além das crenças e clichês, teria sido mais fácil para o Brasil se juntar, na última quinta-feira, para desfrutar, todo mundo junto e feliz, do lançamento do primeiro disco lançado por ele em seis anos, Caravanas. E o melhor em… bastante tempo. Especialmente por ser autoral, enxuto – são apenas 9 faixas, perfeitas para tempos de atenção limitada – e caprichadíssimo.

Está tudo lá. As letras de tramas sofisticadas, músicas e arranjos preciosos e acessíveis e até a “voz chinfrim” do dono da festa.

O disco abre com a música que já tinha sido mostrada para a gente há alguns dias, Tua Cantiga. Sim, aquela que causou uma pequena grita em alguns textões, acusada de machismo. Miopias. Mas já falei sobre isso há uns dias, nas nossas páginas Beltranas. Que você tem que ler, já sabe, não?

Só espero que Blues Pra Bia não ganhe uma polêmica própria (Até posso virar menina / Pra ela me namorar). Uma delícia.

Entre as nove canções, duas não são propriamente inéditas. A Moça do Sonho é da peça Cambaio, parceria com Edu Lobo, de 2001. A outra, muito mais conhecida, é Dueto. Aquela que diz Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas / Eu fiz uma tese, eu li num tratado / Está computado nos dados oficiais / Serás o meu amor, serás a minha paz. Que nunca tinha sido gravada em disco próprio do Chico – e que aqui ganha o reforço da neta Clara, filha da filha Helena e de Carlinhos Brown. A versão é um encanto, com especial graça no final “atualizado”. Não vou dar spoiler. Ouça e se divirta. Já vi que vai ser minha trilha dos próximos dias.

O disco fecha com a música título, seguramente a mais provocativa e política do disco. As caravanas são as hordas que invadem o ambiente dA gente ordeira e virtuosa que apela / Pra polícia despachar de volta / O populacho pra favela / Ou pra Benguela, ou pra Guiné. Pois é. A música tem o melhor verso do ano. Da década. Para a vida: Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.

Ouça. Está disponível no Spotify e em todas as plataformas de streaming de áudio. Depois, fica como sugestão para ser o melhor presente que você pode dar para alguém neste semestre.

De lamentável, só a quase coincidência do lançamento de Caravanas com a morte do baterista de luz própria Wilson das Neves (81 anos), parte fundamental da banda de Chico desde os anos 80, no sábado. Mais um daqueles casos em que nem a idade alivia a sensação de perda.