Aconteceu uma semana atrás. Finalmente, a tão aguardada cerimônia do Nobel – que não tem nada a ver com as premiações que a gente vê na TV, torcendo para que nossos ídolos ganhem. No Nobel deste ano, o ídolo já tinha sido anunciado ganhador do prêmio na categoria Literatura, para alegria de uns e indignação de outros. Ok, já falamos sobre isso.

Bib Dylan não foi. Mandou um discurso para ser lido durante a festa. E foi representado por Patti Smith, que cantou o clássico – e excelente representante da poesia de Dylan – A Hard Rain’s A-Gonna Fall. Nada mais simétrico do que ter uma cantora, compositora e poeta, que trilhou um caminho bastante dylanesco e que também soube misturar cultura pop e literatura, ali, naquele palco intelectual.

E nada mais bonito, pense bem, do que ela falhar ali, ao vivo, tropeçando na letra do hino que ela deve saber de cor a décadas. Pura humanidade, reforçada por um texto que ela publicou há poucos dias no site da The New Yorker.

Vai aí uma tradução claudicante do coração do texto:

Quando cheguei à sala de concertos, estava nevando. Tive um ensaio perfeito com a orquestra. Eu tinha o meu próprio vestiário com um piano, e haviam me levado chá e sopa quente. Eu estava ciente de que as pessoas estavam aguardando minha performance. Tudo estava diante de mim.

Pensei em minha mãe, que me comprou meu primeiro álbum de Dylan quando eu tinha apenas dezesseis anos. Ela achou o disco em uma banca de ofertas e comprou-o com seus trocados. “Ele parecia alguém que você gostaria”, ela me disse. Eu toquei o disco de novo e de novo e minha música preferida do álbum era A Hard Rain’s A-Gonna Fall”. Ocorreu-me então que, embora eu não vivesse na época de Arthur Rimbaud, eu existia na época de Bob Dylan. Eu também pensei em meu marido e me lembrei de tocar a música juntos, imaginando suas mãos formando os acordes.

E então, de repente, chegou a hora. A orquestra estava disposta no balcão próximo ao palco, onde o rei, a família real e os laureados estavam sentados. Sentei-me ao lado do maestro A noite estava acontecendo conforme o planejado. Enquanto eu estava sentada lá, eu imaginei laureados do passado caminhando em direção ao rei para aceitar suas medalhas. Hermann Hesse, Thomas Mann, Albert Camus. Então Bob Dylan foi anunciado como o Prêmio Nobel de Literatura e senti meu coração bater. Depois que um discurso comovente dedicado a ele foi lido, eu ouvi meu nome e me levantei. Como num conto de fadas, fiquei diante do Rei e da Rainha da Suécia e de algumas das grandes mentes do mundo, armada com uma canção em que cada linha codificava a experiência e a resiliência do poeta que a escreveu.
Os acordes iniciais da canção foram introduzidos e eu me ouvi cantar. O primeiro verso foi razoável, um pouco instável, mas eu tinha certeza de que eu iria ficar firme. Mas, em vez disso, fui atingida por uma avalanche de emoções, com tanta intensidade que eu fui incapaz de negociar com elas. Do canto do meu olho, eu podia ver o stand da câmera de televisão e todos os dignitários no palco e as pessoas adiante. Não soube lidar com um ataque tão aterrador de nervos e fui incapaz de continuar. Eu não tinha esquecido as palavras que agora faziam parte de mim. Eu era simplesmente incapaz coloca-las para fora.

Esse estranho fenômeno não diminuiu nem passou. Ele permaneceu cruelmente comigo. Fui obrigada a parar e pedir perdão e, em seguida, tentar novamente, enquanto estava naquele estado. Cantei com todo o meu ser, mas ainda tropeçando. Não pude deixar de notar que a narrativa da canção começa com as palavras “eu tropecei ao lado de doze montanhas enevoadas”, e termina com a linha “e eu vou conhecer bem minha canção bem antes de começar a cantar.” Eu senti a humilhante picada do fracasso, mas também a estranha percepção de que de alguma forma eu tinha entrado e realmente vivido o mundo da letra da música”.

Por essas, por outras, por toda a história de Dylan e de Patti Smith… a música desta sexta não podia ser outra, podia?