Um ano da tragédia no Flamengo: “Ele estava realizado. Faria tudo de novo”, diz pai de Bernardo, de Indaial
Assim como a maioria das famílias, eles ainda não foram indenizados pela morte do filho
Assim como a maioria das famílias, eles ainda não foram indenizados pela morte do filho
Neste sábado, 8 de fevereiro, uma das maiores tragédias da história do Flamengo completa um ano. O incêndio no Ninho do Urubu, centro de treinamento do clube, matou dez pessoas e deixou outras três hospitalizadas. Entre eles, o indaialense Bernardo Pisetta.
Com apenas 14 anos, o adolescente estava realizando um sonho de infância jogando pelo time do coração. Visto frequentemente nos campos e quadras do Vale do Itajaí desde pequeno, ele conseguiu a chance de ser goleiro no Flamengo.
Assim como os demais jovens de outros estados e cidades que atuam nas categorias de base do clube, ele dormia no alojamento que foi tomado pelo fogo. Os pais já estavam a caminho do Rio de Janeiro quando receberam a notícia.
“Assim que recebi um Whats, parei o carro e confirmei na internet. Liguei pro Bernardo e ele não me atendia, também não respondia as mensagens. Liguei para algumas pessoas do Flamengo e ninguém sabia dizer quem eram os feridos. Só peguei a Lêda [mãe dele] na escola e fomos pra casa pegar umas roupas e ir para o Rio”, conta Darlei Pisetta, pai de Bernardo.
Enquanto eles arrumavam as malas, a televisão ficou ligada. A lista de feridos não citava o nome de Bernardo. Eles acreditavam que ele poderia ter escapado. “Mas você fica pensando ‘por que não me ligou? Será que o Flamengo pediu para eles não ligarem para não preocupar outros pais?’. As rádios não paravam de me ligar e comecei a pensar no pior. Desde o início senti um pressentimento ruim”, relembra.
A caminho do Aeroporto de Navegantes, o casal recebeu uma ligação do Flamengo. Sem confirmar os nomes, eles pediram que os pais de Bernardo fossem para o Rio de Janeiro. Logo após, veio a mensagem do avô materno: “O sonho do Bernardo acabou”. A notícia já estava na televisão.
“Minha esposa voltou para casa e eu cheguei lá três da tarde. Até chegar no hotel onde estava a concentração já eram quase oito. Só à uma da manhã fomos para o IML. O corpo só foi liberado às seis da tarde do outro dia”.
Antes mesmo de saírem de Indaial, Darlei já havia entrado em contato com a dentista de Bernardo. A “tia Márcia”, como ele chamava, logo mandou os dados da arcada dentária do adolescente. O pai já sabia que essa poderia ser a única forma de identificá-lo.
“Eu tinha medo de assalto, ou de ele quebrar uma perna. Do resto não tinha medo, porque ele já tava maior do que eu. Sempre que deixava ele no aeroporto eu chorava. Eu estava contente por ele, mas era difícil deixar ele longe. Na última vez em que nos despedimos ele me disse ‘ô pai, vê se não vai chorar hoje'”, lembra Darlei emocionado.
Olhando para trás, Darlei vê que o mês de férias que Bernardo passou em Indaial foi muito significativo para a família. Diferente da maioria dos adolescentes, ele preferiu passar o tempo com os pais, avós e tios ao invés de visitar os amigos.
“Não teve um dia inteiro que ele passou longe da gente. Visitamos todos os parentes, parecia que era uma despedida. Fomos para a praia e todos os dias caminhávamos juntos e conversávamos muito. Ele treinou com os antigos treinadores dele, parece até que ele tava preparando alguma coisa”, comenta.
O último fim de semana de Bernardo na cidade natal foi de celebração. Ele conseguiu acompanhar o time do coração, o Cachorrões, ser campeão do Torneio de Verão. “Ele voltou pra lá muito feliz. Tava realizado”, confirma o pai.
Ainda em fevereiro do ano passado o Ministério Público do Trabalho e Defensoria do Rio de Janeiro propôs um acordo extrajudicial. Ele definia uma indenização conjunta aos familiares no valor de R$ 2 milhões para cada vítima e uma pensão de R$ 10 mil mensais até a data em que os jovens completariam 45 anos de idade.
Entretanto, o Flamengo considerou que a proposta era financeiramente inviável. Para o advogado da família, Thiago Camargo D’Ivanenko, a justificativa soou desonesta. “Eles optaram por negociar individualmente com cada família. Mas enquanto pregavam isso, criaram um teto”, explica.
Desde então, muito pouco avançou na negociação. A família acredita que o teto proposto pelo clube é insuficiente para a gravidade do que aconteceu. Segundo o advogado, apenas três famílias aceitaram o valor. Outras seis continuam buscando uma indenização maior.
Outra família está numa situação ainda mais delicada, pois um dos pais aceitou o valor e entrou com um acordo com o Flamengo. Já o outro, não concordou com a decisão e entrou com uma ação judicial.
Para a família Pisetta, o maior problema não é a indenização, e sim a falta de sensibilidade da diretoria do clube. “Seria injusto dizer que o Flamengo não fez nada. Recebemos toda ajuda financeira necessária, até hoje recebemos uma ajuda mensal e eles custeiam a ajuda psicológica em Blumenau”, explica Darlei.
O pai continua tendo muito carinho pelo clube e afirma não ter nada contra ele. Porém, se mostra magoado com a direção do Flamengo por nunca ter recebido uma ligação ou uma demonstração de afeto.
“Eu gostaria de falar com quem realmente resolve. Não pra falar sobre indenização, mas para nos explicarem o que realmente aconteceu. O que a gente sabe ouvimos na mídia”, apela.
Um dos principais motivos para ele não guardar ressentimento do clube é o respeito à memória do filho. Sabendo que Bernardo sempre resolvia tudo de forma pacífica, ele resolveu honrar o que o jovem teria escolhido. “Claro que temos que defender nossos direitos, mas dentro de uma consciência e tranquilidade. Jamais faria algo que ele não gostasse”.
Na última visita à Indaial, poucos dias antes da tragédia, Bernardo esteve no Torneio de Verão. Na data, foi aplaudido como um sucesso do esporte indaialense. Neste ano, na 35ª edição do evento, a taça levou o seu nome. Além disso, o Complexo do Pame, no bairro Tapajós, foi rebatizado de Complexo Esportivo Bernardo Pisetta.
Mas não foi apenas a Prefeitura de Indaial que tornou o adolescente uma memória. Darlei perde as contas lembrando quantos atletas, amigos e até mesmo desconhecidos homenagearam Bernardo.
O Cachorrões, time por qual Bernardo já jogou, entregou o troféu de terceiro lugar para os pais do adolescente. O prêmio está guardado no quarto dele, junto com vários outros. “A carreira dele foi breve, mas ele se destacou”, comemora o pai.
Além dos amigos, dos mais próximos aos mais distantes, a família também recebeu mensagens de desconhecidos. Muitos enviam presentes para manter a memória de Bernardo acesa.
“Um jogador da seleção portuguesa de beach soccer fez uma luva com o nome do Bernardo e mandou para nós. Uma ciclista, também de longe, colocou o nome dele na luva dela. Ela diz que se um dia pensar em desistir, vai olhar para o nome dele”, conta.
“Ele deixou um legado de humildade, dedicação e persistência. A gente se sente com o dever cumprido, porque educamos ele bem e realizamos os sonhos dele dentro das nossas possibilidades. Os pais tem que lutar pelos sonhos dos filhos, dentro das suas limitações. O que uma criança precisa é de apoio. Se os pais não apoiarem, não tem como ser diferente. Faria tudo de novo”, opina.