Estando inebriada de incertezas aposto em corredeiras anacrônicas e imprevisíveis. Aprecio o sabor do imprevisto, que um ato temporário possa trazer. Alguns lembretes enchem o bolso, mas estão prontos para serem perdidos em algum movimento involuntário. Talvez possa ser o mais perto que posso chegar da ideia de liberdade.

Presumi que a idade me traria convalescência dos pânicos da alma… No entanto, me vejo aqui entorpecida de desejos selvagens, não consigo imaginar a ideia de liberdade num mundo que ainda se presta a decadência, a guerra, a violência, a repressão. As utopias não descartam a dominação, não a colocam como periférica. Ainda convivo com a intranquilidade da perversão e com o ato disciplinar de adestrar os corpos, mantendo-os sob controle.

O que me move é a busca de áreas proibidas, nômade solitária em busca de territórios possíveis de espasmos. Ao mapear intransigente não-localidades, mas estados, me vejo frente a frente com o incomensurável. Ouso uma clandestinidade, não mais aquela de outrora, onde a espiral da aparência já bastava para adequar revoluções.

Hoje é mais difícil. Hoje são os redemoinhos emergentes que marcam, que desmarcam, que causam o eclipse. Sombras acabam sendo emblemáticas, e são muitas. Aparecem de repente, modificam o céu, e estipulam uma cartografia de controle, e de espetáculo. Não me servem mais, se torna um martírio inútil voltar-me ao simulacro.

Faço conjecturas nesse limiar de minha maturidade, talvez não seja preciso revolver muito o solo, para abrir novas portas. Talvez seja anacrônico apenas liberar o tempo, a cronologia imperial, desmontá-la por alguns instantes contagiando relógios e pontos. Pode ser breve, nem precisa necessariamente ser rebuscado, ou violento. Não precisa nem mesmo caracterizar-se como ruptura, porque, convenhamos, todos temem romper, aliás, não sabemos exatamente com o que queremos romper, ou contra o que exatamente queremos confrontar.

Já sei também, neste instante de incertezas, pois a vida me mostrou, que algo radical não resolve se tiver o insensato objetivo de perdurar. Não, não é por aí…penso que o sublime pode ser um caminho. Que seja romântico, já que as paixões induzem. Mas que não necessariamente seja mascarado ou enganador. Sublime como aquele momento em que, retirando as maquiagens de civilidade, retornamos paulatinamente, e às vezes até com sofrimento, aquele reflexo de nós que não brilha nos espelhos, mas que transparece na luz que volta aos olhos, e no corpo que não precisa de permissão para existir.

Um corpo poético, um corpo-livro-livre que expressa a desterritorialização individual, um espaço livre de masmorras e fantasmas. Um espaço onde as fronteiras são declaradas, porque existem e podem nem ser demolidas, mas podem ser evitadas, ou transformadas.

Trata-se da invenção de uma nova linguagem que vá além das palavras para converter-se em atos. Reconhecer-me rainha de mim mesma, monarca desse país-corpo, cidade-imaginada, invisível, sorrateira, imprevisível, déspota. Incongruente, ao deitar a cabeça no travesseiro, só posso sorrir de mim mesma. Aliviada por não portar arma, promovo tiroteios isolados, suicídios exemplares, mas amenos.

Ao abrir os olhos a cada manhã, decifro essa nova vida, disposta ao clima, às aliterações. Recolho, paulatinamente os alvos que acertei. Alguns, admito, faço respiração boca-a-boca, pois tenho ainda desejos ardentes de mantê-los vivos. Mas, a maioria, para alívio meu, consigo, num ato de fúria ou embriaguez, mantê-los mortos, insipientes. Então, pé-ante-pé, continuo minhas anacronias pessoais e subversivas.

Quem sabe assim, sem ser periférica, posso então concordar com Fernando Pessoa: “Não sou nada. Nunca serei nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” E você também!


Silvia Teske
– artista