Desejo criar um mapa. Não, desejo criar uma cartografia de desejos. Pois o mapa é estático, marcado, incorruptível. Já a cartografia é mutante e é desenhada ao mesmo tempo que os desejos. Não cabe a ela os desejos que já não vibram. Me considero apta a fazer uma antropofagia do que me ilumina. Nada obsoleto cabe mais.

Vou desenhar os afetos que me tornam rica, intensa…devoradora de sonhos. Em meu caminho abro meus olhos para o que me move. Não tenho um endereço marcado, um lugar estipulado para a chegada. Antes, me interessa o trânsito, mesmo que transitório. Como o desenho, essa linha, que ao mesmo tempo que marca, é volátil. Ferve de possibilidades e estéticas inenarráveis. Quero estratégias múltiplas, onde a sensibilidade não seja um desconforto, mas torne-se a abolição dos fantasmas.

Desejo a inconsciência lúdica que faz da vida um brinquedo novo. Não quero mais estar armada, prefiro absorver o espírito das coisas. Inventar uma língua de movimentos, expressão e sentido, e com isso inaugurar mundos, que sejam múltiplos. Apropriando-me de imagens, textos e atitudes, ao mesmo tempo expropriando-me do que não me serve mais. Devoro o espírito do tempo, sua insensatez, liquidez, pressa.

Mas, consciente que pretendo estar, desovo modismos ou armadilhas hipervalorizadas. Quero criar uma cartografia, como um mapa flexível, onde sua instabilidade prenuncia os tesouros do arco-íris. Bem sei que tenho que me nutrir de afetos e intensidades, ousar uma composição feita de escolhas plenas, porém não fatais.

Deixo abertas as portas e as janelas para favorecer paisagens inesperadas, espaços neutros para que sejam potencializados e revelem-me essências. Quero ser dona da minha expressão, mergulhar em geografias que promovam pontes e cursar uma travessia que valha a pena. Dona de uma história que transcreve opções e voos, participar de territórios vibráteis onde as frequências possuam ritmos que eu dê conta de dançar, de existir. Quero poder me entregar, abrir passagem para momentos felizes, sem protocolo de comportamento, mas aberta a alforria das realizações.

Meu mapa se constrói por fragilidades, e também por incontinentes e ilhas, por mares, rios, montanhas, numa geografia de adjacências e mutações. Surge por cartas gráficas que fecundam meu desejo, registram o fluxo permanente de transformação que habita os corpos, tanto o meu quanto dos outros que habitam esse mundo que desejo inventar. Para cria-lo preciso estar atenta, vigilante. Não posso me permitir me desconectar das sabedorias adquiridas, mas também não posso negar que elas são fugazes em seus sentidos.

É preciso, portanto, observar o mundo em minha volta e perceber no que ele se engendra, no que se afirma. Será que é afirmação para mim? Ou não estarei apenas coexistindo como espectadora?  Para criar minha cartografia de desejos, é preciso saber do que sou íntima. É preciso ter claro o que me deixa confortável, mas que também não me amordaça. Nesse percurso, tenho que ter bem claro a diferença entre confortável e cômodo.

No primeiro caso é um estar-sendo, sem desistir de suas prioridades por uma aventura vã. No segundo, é um estar-não-sendo, refém de delícias alheias. E nesse caso, prisão dourada, mapa estático. Quero um deslocamento extramoral, onde a expansão de meu cotidiano seja exclusivo, pertencente a mim mesma. Me interessa lidar com as situações a partir de verdades transitórias e não estagnadas.

Quero tornar possível uma composição onde as linhas e as superfícies não sejam construídas por ilusões periféricas, mas por encantamentos vitais. Observar as singularidades que povoam as escolhas, e não as atropelar por pressa ou imprudência. Quero criar uma cartografia mágica, única e potente, onde consiga saber onde estou pisando, ou no mínimo ter a consciência de que me aventuro por trilha antes nem sonhada.

Um caminho que, posso não saber ainda onde vai levar, mas que me sugere uma relação comigo mesma, e não me afaste das vitórias comemoradas. Lembrar o que me fez ou faz feliz e esse ser o termômetro para atitudes de pertença ou escapatória. Eis então o sinal do tesouro no mapa, aquele que não se consuma no produto, mas que é processo para novas e deliciosas estratégias de gozo, importantes para comemorar a vida.


Silvia Teske
– artista