Tive a sorte de conhecer a história do médico húngaro Ignaz Semmelweis ainda no colégio, nas aulas de biologia. Semmelweis era em 1846 o residente chefe da clínica de maternidade do Hospital Geral de Viena, nesse hospital haviam duas enfermarias obstétricas que atendiam os partos. Semmelweis observou que a mortalidade por febre puerperal (febre pós-parto) na primeira enfermaria era de até 20% enquanto que na segunda enfermaria era de 4%.

Isso chamou muito sua atenção e se propôs descobrir a causa com o único objetivo de diminuir essa alta mortalidade, – lembremos que naquela época se desconhecia que infecções eram causadas por microrganismos. As hipóteses sobre as causas da febre puerperal na época passavam por “influências epidêmicas cósmico-telúricas”.

O que for que isso significasse não explicava a diferença de mortalidade nas duas enfermarias. Anedoticamente outra explicação seria a da passagem do sacerdote que ia dar a extrema unção nas puérperas prestes a falecer, antes de chegar na primeira enfermaria ele tinha que atravessar junto aos seus ajudantes que tocavam sinos outras quatro enfermarias, enquanto que pra chegar à segunda enfermaria havia aceso direto. Se dizia que as puérperas de primeira enfermaria entravam em colapso ao escutar o cortejo do padre chegando na enfermaria.

A má fama da primeira enfermaria era de conhecimento público de tal forma que muitas grávidas preferiam ter seus partos na rua da maternidade, – a mortalidade desse grupo também era menor que a do primeiro pavilhão. Uma dúzia de fatores foram analisados e descartados por Semmelweis um a um. Ele chegou à conclusão que o principal fator que explicava essa maior mortalidade na primeira enfermaria era o fato que as grávidas eram atendidas por estudantes de medicina e médicos que na maioria das vezes vinham direto do anfiteatro anatômico onde dissecavam cadáveres.

Atendiam diretamente as parturientes sem tomar nenhum cuidado de higiene enquanto a segunda enfermaria era atendida por enfermeiras que, além de não terem contato com cadáveres, eram muito mais apegadas a medidas higiênicas. Após este descobrimento, no mês de maio de 1947 Semmelweis adota a lavagem obrigatória de mãos para médicos, estudantes e enfermeiros, assim como a antissepsia com uma solução de cloro. A taxa de mortalidade por febre puerperal caiu drasticamente. Apesar do sucesso da descoberta, Semmelweis foi objeto de chacotas e até de desprezo pelos seus colegas médicos que não acreditavam na sua teoria, seu contrato não foi renovado e morreu no ostracismo.

Quando as comissões de infecção hospitalar começaram a serem implantadas nos década dos 60, Semmelweis foi devidamente lembrado, a principal medida implantada nos hospitais foi a de lavagem obrigatória de mãos de toda a equipe médica e paramédica antes de cada atendimento médico hospitalar.

Além de ter passado para a história da medicina como o descobridor da antissepsia e seus benefícios na prevenção das infecções, Semmelweis também passou para a história da sociologia e a psicologia de massas porque justamente se conhece com o nome de “efeito Semmelweis” a tendência que o ser humano tem em rejeitar opiniões contrárias às dele, dessa forma cria um viés de somente acreditar naquilo que está de acordo com suas ideias, é um dos substratos dos radicalismos que nossa sociedade vivencia com muita intensidade nos tempos atuais.

Na semana passada a imprensa divulgou que um dossiê de médicos e ex-médicos do plano de saúde Prevent Senior denunciava muitas irregularidades e ilegalidades em um estudo clínico realizado por esse plano particular de saúde nos seus hospitais, entre elas podemos citar que os pacientes e familiares não eram informados que estavam fazendo parte de um estudo nem sobre os medicamentos usados, o estudo não tinha autorização do comitê de ética, que os dados estadísticos foram manipulados e sete mortes foram ocultadas.

O mencionado estudo não foi revisado por pares nem publicado em nenhuma revista médica. Segundo Daniel Dourado, médico sanitarista e advogado, se confirmadas as acusações, este será o maior escândalo da prática médica e pesquisa clínica que se tem conhecimento no Brasil.

Coincidentemente, o plano de saúde Prevent Senior foi o único que teve crescimento significativo de clientes nestes meses de pandemia, em 2020 teve um lucro líquido 18% superior ao ano anterior, parece ser que o envio do kit covid foi uma eficiente estratégia de marketing respaldada pelas fake news que inundaram as redes sociais.

O diretor executivo da Prevent Senior que compareceu esta semana na CPI da Covid e foi confrontado com provas robustas que confirmam o uso indiscriminado do chamado kit covid, justificou que “os pacientes solicitavam” e que os médicos têm autonomia para prescrever quaisquer medicamentos.

Cabe explicar aqui que os médicos têm autonomia para prescrever tratamentos que tenham um mínimo de eficácia cientificamente comprovada, isso se chama medicina baseada em evidências e que já foi motivo de uma matéria neste jornal. Nenhum médico tem autonomia para prescrever medicamentos sem eficácia. Novas denúncias contra a Prevent Senior apontam que a operadora usou Flutamida, um remédio contra câncer de próstata e também Etanercepte, usado para o tratamento de artrite reumatoide em pacientes com Covid-19. A justificativa novamente foi a tal autonomia do médico.

Ignaz Semmelweis, que sem querer entrou de fato para a história da medicina, é uma das glórias húngaras, naqueles anos em que fez sua descoberta quem dominava a cena musical nas grandes capitais europeias era seu compatriota o grande compositor Franz Liszt, que além de eminente compositor era um pianista virtuoso, que lotava os grandes teatros da época.

Escutar “La Campanella” de Liszt deixava as almas leves e flutuando, talvez seja uma boa recomendação para aliviar o peso de saber que, no meio de uma grave crise sanitária, milhares de pessoas foram submetidas a tratamentos sem eficácia nenhuma e muitas vezes prejudiciais.

Já dizia o grande poeta espanhol Jorge Manrique: “qualquer tempo passado foi melhor”.