A mulher do século XIX era vista como uma eterna doente. A suposta fragilidade física das mulheres era argumento contra sua profissionalização, contra a exposição das mulheres ao tumulto das ruas e à vida noturna, contra quase todos os esforços físicos, contra o abuso nos estudos, contra os excessos sexuais. A medicina da época apresentava as etapas da vida feminina como uma sucessão de crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa eram consideradas “provações perigosas” e as menstruações, “feridas dos ovários que abalam o equilíbrio nervoso”. As estatísticas provam que as mulheres sofreram, no século XIX, uma morbidez e uma mortalidade superior às dos homens. Justo na época das guerras napoleônicas, quando a mortalidade masculina cresceu enormemente. 

 

A opinião púbica e numerosos médicos incriminavam a fraqueza da ‘natureza feminina’, causa biológica eterna e universal a justificar um fatalismo insuperável. A mortalidade das meninas, a partir dos cinco anos, em todos os países ocidentais no período oitocentista, aumentou. As causas confundem-se com as próprias “precauções” justificadas pela dita fragilidade feminina: uma vida menos sadia, alimentação insuficiente a pretexto de ser “mais leve” (a exclusão de carnes vermelhas na dieta das meninas era hábito corrente), falta de exercícios físicos e ar puro – as meninas viviam trancadas em casa frequência baixíssima de banhos em nome do pudor (uma vez por mês depois do período menstrual) além de uma negligência maior nos cuidados maternos e uma acolhida pouco calorosa, desde o nascimento.

 

Pela descrição acima podemos entender de que forma ocorreu e ocorre o controle social sobre o corpo feminino. Não é à toa que a histeria de conversão cresceu enormemente no período vitoriano. O discurso médico muito contribuiu para que mulheres expressassem seus sofrimentos por meio de sintomas e sinais que mimetizavam doenças físicas – afinal eram as eternas doentes – revelando algumas condições sociais e a subjetividade da época. 

Se antes a mulher era uma eterna doente, hoje ela é uma eterna gorda, independente de seu peso e medidas. Seu corpo nunca cabe no corpo, revelando haver em cada mulher uma desleixada, que não sabe comer do jeito certo nem se cuidar da maneira correta.  Eis a mentalidade de dieta controlando e confundindo nosso paladar, fome, saciedade e o prazer em comer. Impondo formas e imagens ideais a todos os corpos. A mentalidade de dieta diz respeito às formas de controle dos corpos e da sensibilidade na atualidade. 

 

Diante de um prato de comida, de um buffet ou mesmo da fome, encontramos pessoas perdidas, tentando contar calorias, saber o que é cientificamente permitido, emitindo opiniões sobre a comida e a alimentação. Essas opiniões são lastreadas em artigos científicos publicados em jornais ou revistas femininas e propagam um comer restritivo e regrado, alienado da subjetividade de quem se alimenta. Estamos desconectados do ato de saciar a fome com o alimento saboroso de nossa escolha e com a quantidade que sentimos ser suficiente. Nossa sociedade desaprendeu a comer, teme comer ou nem mesmo se permite comer e investigar a própria alimentação. Mediados por informações diferentes, nos encontramos perdidos diante do controle produzido por intermediários como: ciência, meios de comunicação, propaganda, moda, indústria, família e escola. Esses intermediários propagam uma nova moralidade, produzida pela a mentalidade de dieta, gerando a perda de autonomia do homem em relação a sua alimentação e ideais sobre a imagem e forma dos corpos.

 

Numa sociedade fóbica com a gordura produzimos mulheres envergonhadas e com medo de ocuparem os lugares públicos, favorecemos o aumento dos problemas e distúrbios alimentares e contribuímos para a alienação dos indivíduos em relação aos sinais que deveriam guiar o comer (fome, saciedade e prazer). Junto a isso, cresce o sentimento de inadequação e de culpa individual.  As mulheres ainda são as maiores vítimas dessa estratégia de dominação por meio da desvalorização de seus corpos. Um sentimento de mal-estar é produzido em nome da inadequação da imagem corporal aos ideais sociais que igualam o feminino a jovem e a magro, compondo um quadro em que imagens fantásticas de corpos perfeitos produzem apenas mais e mais mal-estar.

 

Luciana Saddi, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica PUC-SP. Docente da pós graduação em Educação Alimentar e nutricional – UNIFEBE