Todos nós gostamos de coisas engraçadinhas. Piadinhas. Memes. A vida anda corrida demais para que a gente desperdice sorrisos e risadas. Bom humor é item de sobrevivência básica. Mas… nem toda gracinha é admissível. Tem muito humor por aí que está a serviço das ideias erradas, aquelas que reforçam preconceitos ou ridicularizam pessoas. Tão fácil cair na tentação de rir da diferença ou dos “defeitos” alheios, não é?

O velho humor, aquele que sempre consegue novos representantes, vive disso: dos estereótipos risíveis que acabam sendo os mesmos “tipos” que merecem desprezo e/ou que são alvos de violência. É a loira burra, “cabeça chata”, o “viadinho”, a “nega maluca”, o primo pobre. É a gorda, a feia, o fracassado.

E foi assim que passei o domingo pensando na bunda da Yoko Ono, quem diria. A partir desse meme aí, que já tinha visto também em outros idiomas. Tudo está ruim? Relaxe, a bunda da Yoko é pior. Como assim, gente?

Esse esforço para limpar a sociedade de preconceitos é complicado. Podemos nos alinhar mais facilmente na luta contra o racismo ou contra a homofobia, especialmente quando envolvem violência. Podemos entender a luta por igualdade do feminismo. Mas continuamos achando natural rir da “bunda feia” da Yoko Ono. E até questionar o que será que um cara famoso, genial, como John Lennon viu nela. Claro, ele poderia ter a mulher que quisesse. Por que não pegou uma mulher peituda, bunduda ou, radicalizando o preconceito, loira, branca e de olhos claros?

A beltrana Carina Raquel Podiatsky responde a essa pergunta (que, infelizmente, costuma ser feita por mulheres): “Lennon não se apaixonou por uma bunda,Lennon se apaixonou por uma mente… Mas na sociedade que vivemos, corpos são mais importantes que cérebros!” Márcia Cardeal, mais uma Beltrana que tem uma boa coleção de neurônios, complementa: “me dá uma vergonha alheia danada (e muita preguiça!), ver mulheres questionando atributos físicos e blá-blá… como se isso continuasse a ser a única coisa que uma mulher pode carregar!” É isso.

A foto do casal, aliás, é revolucionária. É a contracapa do álbum Unfinished Music No. 1: Two Virgins, o primeiro trabalho experimental feito em parceria por eles, em 1968, dois anos antes da separação dos Beatles. Na capa, o nu era frontal. O que era tão impensável que o disco foi vendido coberto por uma capa de papel pardo.

Nas fotos, mais do que nus, John e Yoko estão desvestidos. Desvestidos de seus atributos sociais. Ele, músico pop no auge da popularidade. Ela, artista plástica reconhecida em seu nicho – e em vias de se tornar a inimiga pública número um dos fãs dos Beatles. Até hoje.

Essa nudez natural, desvinculada da beleza ou de apelo sexual, ainda é chocante. A bunda da Yoko, quem diria, talvez seja sua “obra” mais contundente. Ela nos lembra que estar fora dos padrões estéticos é uma ofensa pública. Que devemos ter vergonha do que somos, se o que somos não está na lista do que é aceito e celebrado. Do que é vendável.

E você? Acha que uma piadinha não faz mal? Que o meme “é só uma brincadeira” e que o mundo está chato, com essa mania de levar tudo a sério? Melhor prestar atenção. De brincadeira em brincadeira, o humor “ad hominem” vai deixando o mundo cada vez mais intolerante. Hoje, é a bunda da Yoko. Amanhã, é a sua.

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Claudia Bia – jornalista e velha roqueira