A trajetória de uma mãe de Brusque pela educação dos filhos
Ela tirou os dois da escola e agora está se defendendo judicialmente em processo movido pelo MP-SC
Ela tirou os dois da escola e agora está se defendendo judicialmente em processo movido pelo MP-SC
Após anos de problemas com seus filhos em diferentes escolas, a jornalista Giselle Zambiazzi, moradora de Brusque, resolveu retirar seus dois filhos, hoje com 13 e 15 anos, da educação regular. Em vez disso, passou a investir numa educação alternativa, para aproveitar as suas potencialidades.
Mas o problema é que a modalidade de educação domiciliar não está prevista na legislação brasileira, por isso, ela está sendo processada pelo Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC).
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Giselle conta que a saída foi um resultado inevitável depois de anos de problemas com as escolas onde os filhos estudaram. O mais velho tem transtorno do espectro autista e é superdotado, e o mais novo tem características autísticas e também é superdotado.
Os dois frequentaram a escola regular até 2016. Foram anos turbulentos para Giselle e para os filhos.
A cada ida para escola, a volta era um tormento. O mais velho, autista, sofreu inúmeros tipos de abusos de colegas, o chamado bullying.
Além de sofrer com os colegas de classe, a mãe conta que os dois não se encaixavam na metodologia da escola.
“Eu deixava meus filhos bem na escola, e na volta, estavam destroçados. Meu filho mais velho até hoje se trata de depressão, que começou na escola. O professor gritava com ele, chamando de malandro e preguiçoso, porque a letra dele é feia. Mas o desenvolvimento cognitivo dele é acima da média, tenho laudos, relatórios para comprovar isso”, comenta a mãe.
A situação foi se agravando. A cada situação, Giselle era acionada pela direção da escola. Na visão dela, os professores não estavam preparados para lidar com educação inclusiva, por exemplo, o garoto que é autista tem hipersensibilidade na audição, por isso o barulho do lápis o incomoda bastante.
Giselle diz que os professores não levaram em conta essas características específicas dele, assim como do irmão. A cobrança metodológica, padronizada e sem respeitar a condição dos dois era a origem dos problemas para a família.
“A escola ficava conjecturando que eu os colocava para dormir tarde, que eu não os disciplinava, e até suspeita de abuso dos meus filhos dentro de casa. Vieram me sondar. Existe abuso [na realidade brasileira] e a escola é ferramenta importante para identificar, mas espera aí, ali a situação não era essa, não tinha nem cabimento. É uma falta de preparo dos profissionais para lidar com esta questão”, relata a jornalista.
Depressivo por causa da situação na escola, o filho mais velho chorava quase que diariamente antes de ir à escola. À noite, tinha insônia porque no dia seguinte teria de voltar à sala de aula.
Giselle diz que a situação chegou a tal ponto que não havia mais o que ser feito. A escola havia praticamente jogado a toalha.
“A direção da escola me chamou, me colocou contra a parede porque a escola não conseguia conduzir o processo com meus filhos. Não porque não eram capazes, mas porque a escola não é capaz de explorar o conhecimento deles. A via de conhecimento deles é diferente”, afirma.
Giselle lembra de outra conversa que teve com os profissionais da escola. “Foi com a diretora, a coordenadora e a suposta professora de inclusão. As três me botaram na parede: traz tu o método pedagógico para os teus filhos, porque não damos conta. Não é meu papel fazer isso. Sou mãe, não pedagoga”.
Após tantos problemas e vendo os dois filhos serem discriminados pelos colegas e postos à margem do processo educacional, uma atitude teria de ser tomada. Após muitas conversas com os filhos, Giselle os tirou a escola no final de 2016.
Ela destaca que se trata apenas do melhor para os filhos, portanto, não existe nenhuma relação com ideologia ou religião.
Desenvolvimento e normalidade
A melhora para os dois adolescentes foi visível quando saíram da escola. A principal fonte de problemas e de angústia para a família desapareceu.
Em vez de ir à escola, os dois passaram a ter uma educação domiciliar, como se convencionou dizer no Brasil. Giselle é jornalista e trabalha, na maior parte do tempo, em casa.
Por ficar mais em domicílio, ela consegue adequar seus horários à rotina dos filhos. A natureza do jornalismo, de muita pesquisa e leitura, também ajuda, na medida em que ela consegue captar mais conteúdos para passar aos filhos.
A rotina de aprendizado deles é voltada para suas potencialidades. Autistas, mesmo os superdotados, têm aptidão mais voltada para algumas áreas.
Os dois são apaixonados por música, por exemplo. O adolescente mais novo chegou a frequentar aulas de cinco instrumentos na Fundação Cultural de Brusque.
“Não precisava nem mandar o meu filho mais novo. Era um ambiente que ele gostava, aprendia e desenvolvia muito bem”, comenta Giselle. No entanto, ela lamenta que as aulas de música da fundação tenham sido encerradas.
O mais velho também gosta de desenho. Ele pediu e a mãe o inscreveu num curso de desenho, para refinar a técnica, por exemplo.
A educação domiciliar dos dois não é tão “domiciliar”. Eles também fazem aulas numa orquestra e têm desenvolvimento excelente com instrumentos musicais. Os adolescentes também são contumazes frequentadores da biblioteca municipal.
Mas a mãe também se preocupa em passar leituras, documentários e cursos online – comprados – para os filhos. É um método pouco tradicional, mas que, segundo Giselle, tem sido muito bom para os filhos.
Eventualmente, quando ela precisa fazer uma reportagem fora, os filhos vão junto. “Geralmente são experiências muito ricas. Eles têm um contato muito produtivo com a realidade. E as pessoas são receptivas”, comenta.
A casa não é um “mar de rosas”, admite a jornalista, mas melhorou depois que os filhos saíram do ambiente escolar, fonte de estresse para todos. O senso de responsabilidade deles também melhorou. Agora, ajudam nas tarefas domésticas, vão ao mercado e demonstram preocupação com o bom andamento da residência.
Os filhos de Giselle já haviam deixado os bancos escolares há cerca de um ano quando uma pessoa a denunciou ao Conselho Tutelar. A queixa era de que a mãe seria negligente ao deixar os rapazes fora da escola.
Um conselheiro visitou o apartamento dela, no Centro de Brusque. Ela lhe relatou os diversos problemas que houve dentro da escola e o porquê da saída.
O conselheiro mostrou empatia pela situação dos menores, segundo ela. Mas uma denúncia foi encaminhada ao Ministério Público, que então a chamou para se explicar.
A promotora do caso questionou a mãe e analisou a legislação. Acabou por entender que o filho mais velho, considerado autista, está livre de frequentar a escola regular, mas o mais novo ainda deve voltar à sala de aula.
O MP-SC ingressou com uma ação com obrigação de fazer, cumulada com pedido de tutela de urgência. Isso significa que a promotora entrou com um processo para obrigar Giselle a matricular o filho, e na mesma ação pediu urgência para que o juiz determinasse a matrícula dele antes mesmo do fim do processo.
Na ação, a promotora apresentou suas alegações: uma delas é que Giselle não segue a cartilha do Ministério da Educação (MEC), que é obrigatória na educação; outra é que há “indícios de que a mãe da criança tomava a atitude por comodidade”; e por fim que o direito fundamental à educação não estava sendo respeitado.
A defesa, feita pela advogada Elisa Habitzreuter Hassmann Civinski, refuta totalmente essas afirmações.
O processo foi analisado pelo juiz da Vara da Família da Comarca de Brusque, Maycon Favareto. Ele decidiu que o resultado dependia de um outro julgamento que seria feito no Supremo Tribunal Federal (STF), por isso deixou o processo sobrestado e negou a tutela de urgência.
O Ministério Público não concordou e recorreu ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), por meio de um agravo de instrumento, para que a tutela de urgência fosse dada, no sentido de obrigar a mãe a matricular o filho e comprovar a frequência dele.
O processo ficou em suspenso até o 18 de setembro. Neste dia, o tribunal julgou e deu razão ao MP-SC. Determinou, então, que Giselle matricule o filho e comprove frequência trimestralmente, sob pena de multa de R$ 50 por dia de descumprimento, até o limite de R$ 15 mil.
Essa decisão diz respeito apenas ao agravo de instrumento. O julgamento do processo principal ainda está na Vara da Família em Brusque.
O resultado desta decisão do TJ-SC foi enviado para Brusque no dia 21 de setembro e agora o processo está pronto para ser analisado pelo juiz.
STF
O veredito do caso de Giselle no TJ-SC veio seis dias depois do julgamento do STF, a mais alta corte do país. O Supremo considerou ilegal o ensino domiciliar.
O entendimento da maior parte dos ministros foi de que é necessária uma lei para que este tipo de educação seja permitida. Por enquanto, eles consideraram a prática ilegal.
O julgamento no STF tratou de uma ação de uma família de Canela (RS). Os pais entendem que a educação regular não é a melhor para três dos quatro filhos e foram à Justiça.
A sentença dada a este processo agora serve de base para julgamentos de muitas outras ações que tramitam no país, como o caso de Giselle.
Alegações da defesa
A advogada Elisa explica que algumas alegações já foram apresentadas no momento do julgamento do recurso no TJ-SC. Porém, a defesa se manifestará também no processo principal – na Comarca de Brusque.
A representante legal argumentou que “um dos grandes problemas é que os dois sofriam muito bullying no colégio e que Giselle buscava a escola para resolver, para encontrar uma solução, mas não se resolvia.”
A defesa também alegou que “a escola não supria a necessidade dos filhos, o ensino regular não estava sendo proveitoso”. Por exemplo, o menino que é superdotado, inclusive, tem necessidade especiais e precisaria de segundo professor em sala de aula.
“Em decorrência do bullying, ele estava sofrendo prejuízo intelectual e psicológico. A ponto de chegar em frente à escola e chorar porque não queria mais entrar”, comenta Elisa.
“Alegamos também que no ensino domiciliar não existe prejuízo intelectual, porque, apesar de não seguir a cartilha do MEC, tem amplitude muito maior. Estudam o que têm aptidão. Acaba sendo um estudo interdisciplinar, o que a escola não consegue fazer”, acrescenta a advogada.
Quanto à argumentação do MP-SC de que Giselle nega o direito à educação do filho (só um está na ação), a defesa alegou, no processo, que, pelo contrário, a mãe incentiva a busca pelo conhecimento por meio de leituras, cursos e outros métodos.
A defesa também rechaçou que exista prejuízo na socialização dos dois. Os garotos saem e frequentam cursos fora de casa, portanto, não há que se falar em isolamento.
Processo penal
Além do processo cível, Giselle também está sendo processada no âmbito penal pelo MP-SC. Esta ação ainda está em trâmite.
A determinação do TJ-SC para que Giselle matricule o filho é com tutela de urgência, portanto, ela deve cumpri-la independentemente se o julgamento do processo principal já aconteceu.
Com a decisão do STF, é improvável que o juiz da Comarca de Brusque decida a favor de Giselle. Ela está ciente disso, mas afirma que adotará uma postura diferente depois que o filho voltar à escola.
“Vou começar a exigir do Estado. Eu devia ter ido ao Ministério Público denunciar cada coisinha que aconteceu nesses anos comigo e com outras pessoas”, diz Giselle.
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Ela já foi presidente da Associação de Pais, Profissionais e Amigos dos Autistas de Brusque e Região (AMA Brusque) e conta que já recebeu inúmeros relatos de pais desesperados com o tratamento dado aos filhos em escolas públicas e particulares.
“A escola não é saudável nem para professores nem para alunos. Hoje, a escola é um ambiente insalubre. E não me venha com a conversa que escola particular é melhor porque não é. A particular é a primeira a pegar alunos neurodivergentes, ou deficientes, como queiram, a convidar a se retirar”, diz.
“Fui presidente da AMA Brusque e estou palestrando há seis anos e não tem um dia que uma família não me procure para me contar caso de escola. Temos casos em Brusque de a escola convidar a família se retirar, ou de os outros pais pressionarem a direção para que a criança saia da sala do seu filho porque vai prejudicar o desenvolvimento”, completa.
Para ela, é necessário abrir uma discussão sobre a educação no Brasil, que não é inclusiva. Giselle quer que seu caso pelo menos abra este debate.