O barulho ou a cena? O que lembro primeiro? Não chegou a doer na hora. Adrenalina funciona rápido. Acho que acertou o guidão antes de minha mão, punho, braço, na sequência, e projetou tudo para a calçada.
Puts! Acertou minha mão com o retrovisor do carro. É, agora dói.
Fui levantando a bicicleta com a mão direita, pois a esquerda já me dava medo. E, então, para minha surpresa, que desenhou a lógica das relações que estimo, o carro, que prontamente parou e esgaçou a porta, despejou alguém que não atendeu minhas expectativas.
– Sua anta! Quer morrer? Olha meu retrovisor!
– Moça, você, de fato, podia ter me matado.
– Devia mesmo! Tu vai pagar, heim! Por que tu não anda na calçada?
– Se a senhora mudar o tom da voz e quiser conversar… a calçada tem uns obstáculos…
– Cala a boca! Conversar o quê? Tu vai pagar! Que obstáculos?
– Senhora, eu não preciso andar na calçada, tenho direito de estar aqui. Você devia ter reduzido, ou desviado de mim.
– Sua filha… Tais dizendo que a culpa é minha, é?
– A senhora está me ofendendo. Não é necessário me agredir. Tô sem meu celular, mas meu marido e filho estão vindo logo atrás de mim.
– Tu acha que tenho medo, é? Quer resolver de outro jeito?
Foi um momento muito esquisito, pois ela se posicionou como num ringue, nariz ofegante. Uma mulher com testosterona à flor da pele. Quem sabe misturada com nervosismo, devido ao susto e a total ausência de empatia. Eu tremia um pouco, sei lá se da batida ou do monstrinho que nasceu dela.
– Senhora, meu punho dói. Não desejo qualquer tipo de agressão. A senhora está me deixando confusa.
– Eu vou chamar a polícia, sua… Vou te processar.
– A senhora, por favor, pode chamar o Samu, também?
A minha calma. É, talvez tenha sido isso que a deixou desmedida, alterada. Tudo pelo amor ao retrovisor e sem qualquer consideração por mim. Não, não. Ela saiu vomitando raivas de dentro do veículo, ou seja, não foi por minha calma, foi pela cega paixão ao retrovisor e a absoluta certeza de que eu provocara o acidente. Bem provável.
Meu marido me avistou e foi estacionando o carro. Naquele momento disse a ela:
– A senhora faça o favor de não falar palavrões na frente do meu filho.
– Sua fingida. Tu vai pagar. Vou te processar.
A polícia e Samu chegaram. Fui encaminhada ao hospital e está tudo bem comigo. Com ela? Deu dó. O descompasso entre eu e o retrovisor, entre quem está certo e errado, entre você estar dirigindo um carro e o outro uma bicicleta, entre o grito e a gentileza, entre você não se sensibilizar pelo que é sensível. Este descompasso é bem mais difícil de tratar do que meu punho. No entanto, se fosse a vida do ciclista, teríamos aqui um abismo. A linha fininha, fininha, entre o acidente e a tragédia.
Ciclovias ou ciclofaixas, quando existem, em Brusque, são precárias, recortadas, apagadas, sem acesso quando na via contrária, sem sinalização adequada e geram imprecisão no desenrolar de um caso como o meu. A própria polícia teve dúvidas. A motorista e eu poderíamos ter, inclusive, questionado a condição que a rua nos coloca. Conversado sobre a dificuldade de transitar por ali quando vários veículos, de grande e pequeno porte, precisam de espaço. Ela, certamente, não quis atrasar seu almoço de dia das mães, nem me machucar. Contudo perdeu a oportunidade de amenizar a violência do impacto, de refletir e ampliar a discussão sobre o perigo de nossas estradas e a nossa falta de atenção e informação. Até ela verbalizar e se aproximar de mim com ódio, nem sei se haviam “culpados”.
Está tudo bem comigo, como disse, mas nunca quis tanto levantar essa bandeira.
CICLISTA TEM DE SER RESPEITADO! E ADMIRADO!
Karline Beber Branco – ciclista, professora e mãe