Vou lhes contar a história de um lugar onde os moradores não conseguiam viver sem alguém que mandasse neles. Durante anos a fio sempre foram controlados por alguém que lhes dizia o que fazer e quando fazer. Esse lugar, com regras e normas, pretendia ser civilizado. Já que todos, aparentemente, agiam com respeito uns pelos outros, pelo próprio lugar e por outros moradores de espécies diferentes, como animais, plantas, mares, rios, florestas…
No entanto, as leis que regiam este lugar, ditadas pelo mandante, nem sempre eram cumpridas à risca. Talvez porque as leis também eram criadas para beneficiar alguns em detrimento de outros. O lugar foi se tornando inóspito. Hordas de demolidores começaram a depredar a vida que mantinha o lugar em harmonia. Começaram pelos animais, primeiramente com a desculpa de nutrir-se, mas logo passou a ser diversão pela caça. Muitos foram exterminados. Depois, a horda aumentou e iniciaram a destruição da natureza. Paulatinamente os efeitos começaram a danificar perigosamente a atmosfera e o clima do lugar.
Então, com medo de perderem seu conforto, foram criadas leis que proibiam esse tipo de massacre. Mas ninguém prestou atenção, muito menos o mandante (já que o mesmo não prestava atenção que ele próprio possuía características próprias da espécie, entre elas o ego inflado), de que o que estava acontecendo é que os moradores viviam um exercício de buscar quem eram nesse lugar. Toda a raiva e ódio disseminados com animais e natureza nada mais era do que o instinto natural que precisava vir à tona. Eles não sabiam que possuíam esses sentimentos. E por não saberem, continuaram buscando um alvo para aquela emoção desconhecida.
Tanto procuraram algo ou alguém em quem destilar seu veneno, que acabaram encontrando no outro, da sua espécie o mesmo ato aniquilador. E o lugar foi ficando cada vez mais difícil de se viver.
No entanto, havia alguns moradores, que de alguma forma conseguiram fugir do jugo do mandante e iniciaram práticas que lhe devolvessem o amor próprio, e sua individualidade. Eram habitantes diferentes, que possuíam gêneros, cor, atitudes distintas das regras impostas. O lugar parecia que iria ter esperança. Mas, como a grande maioria ainda vivia preso ao fato de ser mandado, esses passaram a ser o alvo perfeito para sua violência. E o caos se instalou.
Os mandantes eram trocados, mas nada segurava nenhum dos lados: uns buscando liberdade e outros impunidade. Ninguém se dava conta que o problema do lugar, era que a maioria dos residentes não estava gostando do fato de que com esses seres díspares, se revelava a humanidade que todos possuíam. E que não era bela. E que não era igual para todos. E que não tinha uma única cor. E que possuía vários gêneros, além dos binários. Que a família se dava por afeto e não por hierarquia. O lugar ficava cada vez mais caótico.
Mas, entre o caos que se instalara, e a outrora versão de ordem, era neste instante de reflexão sobre si mesmo, que o lugar finalmente poderia sobreviver com sinceridade. Que os ocupantes poderiam conviver e canalizar seus instintos para a descoberta de si, vendo o outro como um vizinho que sempre teria algo para lhe ensinar, e também para aprender. O lugar poderia ampliar-se, já que fauna e flora poderiam renascer, e os moradores poderiam acrescentar um ao outro suas peculiaridades. Mas, o número de inquilinos que necessitava ser mandado era maior do que o número dos que queriam controlar a si mesmos, ou até mesmo perder o controle, para permitir que o lugar lhes dissesse o que estavam fazendo ali.
E foi dessa forma que o lugar virou apenas um espaço, onde um novo mandante passou a governar e com armas e opressões transformou o lugar em um reino de seres automatizados. E foi assim, que o lugar deixou de ser habitável por seres e metamorfoseou-se em laboratório de robôs. Hoje nem se sabe mais que lugar é esse, saiu do mapa, virou um lugar que não se pode viver, onde quem é estrangeiro ou diferente não é considerado bem-vindo.
Conto essa história para que a gente reflita sobre o que queremos do lugar onde moramos, e se, com tantas conquistas que a humanidade já conseguiu, será realmente necessário retroceder e ficar à mercê de regras e normas que são contrárias à nossa natureza humana.
Silvia Teske – artista