A música é um clássico natalino norte-americano. O nome dela é Baby, It’s Cold Outside e ela foi popularizada em uma cena do filme A Filha de Netuno, de 1949. Virou clássico natalino, embora a relação me escape. Talvez o filme explique. Ou a estação do ano. O que interessa é que é um dueto – cantado no filme por Esther Williams e um Ricardo Montalban que não lembra em nada o senhor Roarke da Ilha da Fantasia. Foi regravado várias vezes ao longo das últimas décadas. Foi recriado no especial de Natal da segunda temporada de Glee, nas vozes e interpretações de Chris Colfer (Kurt) e Darren Criss (Blaine). Confesso que só aí fui conhecer a música.
A letra é, como não poderia deixar de ser, um diálogo. A moça diz que está ficando tarde e que ela tem que ir para casa. O moço faz de tudo para convencê-la a ficar. Diz que está frio lá fora, que não tem táxi, oferece um drink. Ela diz que a mãe vai começar a ficar preocupada, que os vizinhos vão falar dela… e, por duas vezes, ela diz não. E ele continua insistindo.
I ought to say, no, no, no sir (mind if I move in closer?)
The answer is no (but baby, it’s cold outside)
Aí que mora o problema. O que, na época, passava por um flerte charmoso, hollywoodiano… hoje é percebido como assédio hollywoodiano. Acho que podemos chamar assim, depois das denúncias todas que vieram no encalço do escândalo envolvendo o produtor Harvey Weinstein.
E foi assim que uma rádio norte-americana, que faz todo ano uma programação natalina especial, resolveu, depois de várias reclamações, tirar Baby, it’s Cold Outside de sua playlist. E o assunto ganhou o mundo. É justo? É mais um caso de “o mundo está cada vez mais chato”? Ou, como diz o comentário em um vídeo da música no YouTube, “o politicamente está destruindo a cultura ocidental”?
Eu tenho uma sugestão: veja a cena original do filme e perceba se ela deixa você um pouco desconfortável (tem um momento na letra em que a moça pergunta se ele colocou algo na bebida dela, vai reparando). Repare também em toda a coreografia, na linguagem corporal, no colocar e tirar casaco e chapéu… das aproximações e insistências em manter a moça com um copo na mão… Repare também no momento em que ele deixa cair a máscara da sedução e pergunta “por que você está fazendo isso comigo?”, como se o não da moça fosse uma ofensa pessoal à “irresistibilidade” do macho alfa.
Ok. Agora vamos mudar o foco. O filme é do final dos anos 40, pós-guerra, uma época em que os valores estavam em rápida mutação. A época que criou o ambiente perfeito para que, logo em seguida, nascesse o rock’n’roll e suas frequentes letras com segundas intenções sexuais. A letra, a cena, a cantada, tudo parece combinar com um tempo em que a moralidade estava se transformando. Se a gente olhar para o filme e ouvir a música tendo em mente o contexto, a época, tudo faz mais sentido. Explicar isso para quem chegou depois pode ser interessante em vários aspectos, da simples comparação de diferentes momentos da História até o debate sobre o papel do homem e da mulher, hoje.
É o mesmo raciocínio que se pode aplicar à obra de Monteiro Lobato, que foi alvo de uma campanha por seu banimento das escolas, por ter trechos evidentemente racistas. Explique o contexto. Discuta o assunto. Compare o ontem e o hoje. Tudo isso parece ser melhor do que varrer o que é questionável para baixo do tapete. Faça o contrário: questione o que é questionável.
Por outro lado… faz sentido também a retirada da música da programação da rádio lá dos States – ou de qualquer outro lugar. Porque sem uma conversa que coloque a letra em seu contexto, a música pode apenas reforçar um comportamento que não é mais aceitável. Se os últimos dois anos serviram só para ensinar que não é não, já não foram inúteis. Mostrar que a insistência em manter a moça na casa do moço, sem o consentimento claro dela, é parte do jogo da sedução, não cabe mais nos dias de hoje. E não tem que caber, mesmo. Não é não.
Tanto é assim que as regravações mais modernas da música, como a feita por Idina Menzel e Michael Bublé suprimiram os trechos em que a moça diz claramente que a resposta é não. Para retirar do diálogo o amargor do assédio.
Mas será que isso é o suficiente? Podemos acreditar que essa conversa ainda vai longe.
Ah, sim: o vídeo original mostra, em sua segunda metade, a inversão dos papeis: é a personagem de Betty Garrett que quer que Red Skelton passe a noite com ela. E o que era “sedução charmosa” vira… comédia. Se isso não quer dizer um bocado de coisas sobre o papel feminino em uma relação, naquele tempo e, talvez, também hoje… não sei o que mais significaria.
O pior é que, agora, a música não sai da minha cabeça…
Claudia Bia – jornalista, fã de filmes antigos (e modernos) e fã de colocar as coisas em seu contexto devido