Eu estava no internato da faculdade, estagiando no setor de Oncologia Ginecológica. Naquelas semanas, cada interno seria responsável por uma paciente. Dr José* me entregou o prontuário dizendo “você fica com a Dona Helena*”, com uma expressão de pesar. No quarto, a dona Helena – deitada, imóvel e muito inchada – parecia não me ouvir, mas quando respondia, com a voz muito fraca e quase inaudível, era gentil. Não havia visitas para me esclarecer detalhes, mas sua situação já estava clara em seu prontuário: estava em estágio terminal de câncer de mama. Enfermagem lamentava, fisioterapeuta lamentava, médicos e nós, estudantes, lamentávamos. O final de semana se aproximava e quem não estaria no hospital preparava-se para não encontrá-la na 2ª feira. Parece que haveria uma extrema unção, ou algo parecido, na 6ªfeira ao final do dia. Era o fim se aproximando. Tomara que ela aguentasse até lá.

 

Eu voltei na 2ª feira com receio de entrar no quarto. Vi que seu prontuário ainda estava na estante, com seu nome impresso, e fiquei menos angustiada. Parece que na 6ª feira houve algo espiritual, algo como imposição de mãos, bênçãos de padre, pastor ou até cirurgia espiritual, não lembro (sequer lembro qual era a religião). O fato é que ocorreu algo inexplicável quando entrei no quarto e vi dona Helena: quem mal falava, estava falando e mais, falando muito! Quem nem conseguia levantar a colher para se alimentar, estava não apenas comendo, mas inclusive levantando pesos e deixando a fisioterapeuta orgulhosa! Eu não pude acreditar! Na 6ª feira ela estava moribunda, e 2ª feira era outra pessoa. A única coisa que houve de diferente de lá para então? Exatamente o que você está pensando: a intervenção espiritual.

 

A espiritualidade sempre fez parte da vida da Humanidade. Em algumas culturas, Espiritualidade e Medicina misturam-se. Em nossa cultura vigente, as duas vertentes andam separadas e muitas vezes são consideradas, infelizmente, excludentes. É triste ver cientistas céticos na parte espiritual, assim como é triste ver pacientes que se apegam apenas a orações e dizem não às atitudes e tratamentos cientificamente comprovados.

 

Há estudos indicativos que espiritualidade favorece o prognóstico (chance de melhora) de diversas doenças e influencia na longevidade das pessoas. A melhora do ânimo, humor, calma e confiança faz com que as pessoas reajam melhor às agressões, recuperem-se mais facilmente.  Logo, há quem diga que, independente de espiritualidade ou não, o que faz diferença é o ânimo e a disciplina da pessoa, seja ela religiosa ou ateísta. Portanto, para muitos, meditar, fazer ioga ou escutar música clássica também produziria esse efeito.

 

O assunto é polêmico. Comprovado ou não, acreditar no bem, querer o bem e sentir-se querido por quem ora por você faz diferença. Cada pessoa tem sua experiência pessoal de fé e muitas vezes ela não será comprovada cientificamente. No entanto, que jamais alguém use a religião para afastar-se da medicina, e que jamais o cuidado em saúde esqueça da espiritualidade – esta que faz a vida mais leve, o amor presente, o consolo mais efetivo… e a vida com mais sentido.

 

Voltando à dona Helena: ela acabou falecendo pouco tempo depois, conforme já esperado pela equipe de saúde. Mas teve seus últimos dias menos sofridos, e alívio do sofrimento rendeu-lhe belos sorrisos nos seus últimos dias de vida.

 

*nomes fictícios

 

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Maiara Dalcegio Favretto– Médica Oftalmologista