Muitas vezes o consultório médico representa um retrato do que acontece na comunidade. Quanto mais representativa da sociedade for o grupo de pacientes esse retrato será mais fiel do momento vivenciado.

Quando o médico transcende os aspectos puramente clínicos e se interessa pelo entorno familiar, social e laboral do paciente além de obter uma fotografia do que se passa na sociedade pode se obter informações importantes sobre as condições em que surgiram os sintomas do paciente.

Alguns anos atrás, lembro ter atendido num período de poucas semanas um número significativo de pacientes com queixas de depressão e ansiedade que tinham como denominador comum o fato de ter perdido seu emprego, já que formavam parte do governo municipal que não conseguiu se reeleger.

Com certeza este tipo de situação passa despercebido para a maior parte da sociedade, mas não escapa ao olhar atento de alguém que vai além dos sintomas clínicos dos pacientes.

Nos últimos anos o Brasil vive uma fase de intensa polarização política, todo tipo de polarização tem uma estreita relação com a saúde mental.

Por este motivo pessoas com todo tipo de alteração mental e emocional derivada dessa polarização acabam procurando serviços médicos e psicológicos.

Confrontos entre familiares e amigos provocados pela polarização política tem aumentado o número de atendimentos de médicos e psicólogos que lidam com saúde mental.

É verdade que muitas vezes o próprio afetado acredita que não tem nada de errado e são seus familiares os que exigem o atendimento médico.

A neurociência há vários anos tem estudado os mecanismos cerebrais que levam à polarização política.

Podemos afirmar que a polarização afeta principalmente a atenção, a memória e faz com que, tomados pela emoção, comecemos a reconhecer como verdadeiro exclusivamente aquilo que está de acordo com nossas preferências políticas.

Tudo o que venha a desmentir aquilo que é da nossa crença é rejeitado como falso. Dessa forma se cria aquilo que é chamado de Dissonância Cognitiva. Essa teoria foi desenvolvida pelo professor Leon Festinger em 1957.

Se cria uma dissonância quando uma pessoa enfrenta fatos e opiniões que não são condizentes com o que ele pensa de si ou com aquilo no qual ele acredita. O acúmulo do número de dissonâncias vai criando um estado de ansiedade, angústia e irritabilidade.

Sendo assim, a pessoa é obrigada a acionar mecanismos psicológicos diversos para tentar diminuir a dissonância. Entre esses mecanismos está a radicalização das suas crenças e o aumento da agressividade verbal e até física para defender aquele sistema de ideias que povoa sua mente.

Então é frequente que a pessoa polarizada contrarie qualquer lógica básica e passe a aplicar “sua própria lógica”.

Cria falsas memórias, ignora conhecimentos científicos, desvirtua fatos e em casos extremos pode levar à perda total de contato com a realidade.

A psicóloga cognitiva Daantje Bruin da Universidade de Brown (Providence, USA) afirma que as pessoas polarizadas aplicam o filtro ideológico desde o primeiro momento que são expostas a uma informação.

Clara Petrus, uma pesquisadora em neurociência social da Universidade Autónoma de Barcelona publicou um estudo com 36 pessoas votantes do Vox, partido da extrema direita espanhola.

Analisou mediante um exame sofisticado de ressonância magnética funcional a atividade cerebral dos pacientes enquanto mostrava conteúdos de redes sociais que iam de neutros a polarizados. Quando o conteúdo era polarizado, a atividade cerebral era muito grande.

Não há motivos para pensar que o mesmo não aconteça com militantes do outro extremo político. Um dos maiores conhecedores sobre polarização e neurociência é o cientista Mariano Sigman.

Sigman, de nacionalidade argentina, é físico de formação e tem doutorado em neurociência pela Universidade Rockefeller(NY). Ele explica que aproveitando a facilidade da divulgação de conteúdos através das redes sociais os políticos descobriram que a publicação de conteúdos com forte carga emocional cria adesão, visualizações e “likes”.

Isto acontece independentemente da veracidade do conteúdo já que a mensagem vai direcionada aos seguidores que estão ávidos por notícias que confirmem o que eles pensam.

Esse tipo de conteúdo gera uma sensação de bem estar nos seus seguidores e portanto nunca é questionada a veracidade ou a fonte da postagem.

Os políticos sabem que os conteúdos com mais carga moral como por exemplo acusações de corrupção, roubo, assassinato, pedofilia, etc. aumentam muito a possibilidade de viralização dessa publicação.

Mariano Sigman chama isto de um sistema de exaltação ao ódio, dessa forma se cria uma polarização de tipo afetiva que muitas vezes é irreversível, esse tipo de polarização é imune a qualquer lógica argumentativa.

A própria pesquisadora Clara Pretus afirma que quando ativamos circuitos cerebrais mais afetivos e identitários (tribais) se inibem os circuitos de deliberação, não há possibilidade de confrontar as ideias, um circuito enforca o outro.

A polarização afetiva chega ao ponto que a pessoa passa a defender pautas que na verdade vão contra seus próprios interesses e os interesses do grupo social ao qual pertence.

O conhecimento de como funciona o cérebro humano e como reage a conteúdos com carga emocional tem ajudado muito na compreensão de muitos transtornos do sistema nervoso, mas também pode ser usado para a manipulação, para a criação de polarização artificial mediante a divulgação de conteúdos que o próprio autor sabe que são falsos mas que o objetivo é apenas fidelizar seguidores e aprofundar a polarização.

Adquirir conhecimentos sobre história, sociologia, geopolítica, civilizações, etc. exige esforço e dedicação, não se melhora nossa cultura geral assistindo vídeos de meio minuto, memes e outros conteúdos criados apenas para manter uma legião de seguidores nas redes sociais.

O pesquisador Pedro Pérez Zafrilla da Universidade de Valencia Espanha alerta que seguir alimentando a polarização pode levar ao enfrentamento social direto.

A história universal nos ensina que o fanatismo é o caminho perfeito para o fracasso.