Iniciei a faculdade de Medicina no ano de 1978. Tive a sorte de estudar na maior e melhor universidade pública do meu país, o Equador. Outra coincidência feliz foi eu ter me formado com as últimas turmas de medicina onde o foco principal era a história clínica e o exame físico detalhado do paciente.

Naquela época, embora já existisse o exame de ultrassom, o exame de imagem que predominava ainda era o centenário Rx. As imagens que os aparelhos de ultrassom da época conseguiam registrar pareceriam sombras sem definição, se comparadas com as imagens obtidas pelos aparelhos atuais.

O predicado de que uma boa história clínica e um bom exame físico são suficientes para determinar mais de 95% dos diagnósticos se mantém até hoje. Mas, como o ensino e a prática da medicina mudaram muito desde então, o que observamos na prática clínica atual é a procura de diagnósticos com base no pedido de exames complementares dos mais diversos tipos, frequentemente em demasia e com exageros. Além disso, dá para dizer que esse é um dos motivos dos altos custos dos planos de saúde particulares atualmente.

Lembro dos primeiros anos estudando anatomia, onde muitos reprovavam. Os professores eram muito exigentes, tínhamos aulas teóricas, logo aulas práticas, posteriormente aulas de reconhecimento de peças anatômicas com os ajudantes de cátedra (alunos que já tinham sido aprovados na disciplina) e aulas de dissecção de peças anatômicas.

Como se fosse pouco, concomitantemente, estudávamos “anatomia radiológica”, que era nada mais do que ter conhecimento das características de cada região do corpo normal na placa de Rx.

Colegas professores me relatam que nada disso existe mais. Muitas faculdades de medicina substituíram as peças anatômicas de cadáveres formolizados por modelos acrílicos em 3D. Outras as substituíram apenas por modelos computadorizados em 3D.

Tive a oportunidade de frequentar excelentes laboratórios que serviam como complemento ao aprendizado. Ao estudar Histologia (estudo dos diversos tecidos do corpo humano) já frequentamos o laboratório de histopatologia.

Nosso livro texto de Histologia (Histologia de Ham) vinha com uma coleção de slides (diapositivas) maravilhosa com imagens de quase todos os tecidos do corpo.

Os livros de medicina sempre foram muito caros, mas tivemos a sorte que naqueles anos a Organização Panamericana da Saúde tinha um programa que subsidiava o preço de uma série de livros de medicina. Esse programa ajudou milhares de estudantes de medicina em toda América Latina. Somente assim podíamos adquirir os livros de Anatomia, Fisiologia, Embriologia, Patologia, Histologia, etc.

Eram outras épocas. Atualmente, embora ainda existam excelentes livros textos, os conteúdos académicos estão mais condensados. Um amigo professor me diz que passa para os estudantes todo o conteúdo que vai ser avaliado nas provas diretamente para os estudantes.

Lembro da grande dificuldade que existia na época para conseguir artigos científicos recentes, as revistas médicas tardavam em chegar na biblioteca. Muitas vezes tinha que esperar meses para conseguir algum artigo de interesse. Com o advento da internet veio também uma facilidade muito grande para conseguir literatura médica recente.

Não há dúvidas que esta facilidade contribui muito para a atualização dos conhecimentos, lembrando que ter bons fundamentos de metodologia científica e de epidemiologia clínica é necessário para dar o devido valor a cada artigo científico que chega a nossas mãos. Acredito que essas matérias devem fazer parte da grade curricular do médico.

Mesmo em países de primeiro mundo, como Estados Unidos, o ensino médico passa por questionamentos e dificuldades. Embora disponham de uma excelente estrutura para dar suporte aos estudantes nos dois primeiros anos, quando se dedicam às ciências básicas, eles enfrentam dificuldades no momento do ensino de clínica médica.

Muitas vezes são os residentes (que também estão em fase de aprendizado) os que assumem a tarefa de ensinar e orientar os estudantes, sendo que os residentes não têm a capacitação necessária para assumir esse papel.

Posso dizer que não há nada melhor para o aprendizado em medicina do que a discussão de casos clínicos com os professores e os médicos do hospital, principalmente quando se tem a sorte de ter chefes de serviço muito competentes e sábios. São discussões clínicas com duração de aproximadamente duas horas, que, além do aprendizado, a maior recompensa é conhecer os labirintos do raciocínio clínico.

O New England Journal of Medicine (NEJM), além dos excelentes artigos, ficou famoso pelo relato do seu caso clínico semanal, uma fonte incrível de conhecimento médico.

Se há preocupações referentes à qualidade do ensino médico no presente e no futuro, essas preocupações aumentam ao conhecer que o mercado de faculdades de medicina virou a “galinha dos ovos de ouro” para os grandes grupos que atuam no ensino universitário privado no país.

Os cursos de medicina são os mais visados dentro do ensino superior, porque possuem a maior mensalidade (muitos superam os R$10 mil) e uma inadimplência muito baixa.

Não deveríamos permitir que os cursos de medicina sejam tratados como simples mercadoria e as autoridades devem estar atentas para manter um mínimo de controle sobre a qualidade dos mesmos. Atualmente há pedidos na justiça para a abertura de mais de 20 mil vagas em cursos de medicina.

Há alguns anos li um livro inspirador chamado “A arte de curar” de autoria do cardiologista norte americano Bernard Lown. O Dr. Lown foi um dos pioneiros no uso do desfibrilador cardíaco em casos de taquicardia ventricular. É um livro que recomendo a todos que tem interesse na carreira médica ou que queiram conhecer o verdadeiro sentido da vocação médica.