Ela mora com a mãe, ainda que nos seus trinta e muitos. Ela prefere, quase meio século as enfrentam, mas ela não reluta e vive numa frustrada paz. Foi temporona, depois de três. Nasceu tranquila pelas pernas e recebida pela parteira avó. A mãe beirava os 43, nos finalmentes da década de 70 e tocou a filharada em companhia obstinada da mãe – a avó dela – quase nada com o marido – o pai dela – que trabalhava mais do que dormia em casa.

Moram num bairro misturado na saída de Brusque, onde brotou muita gente nos últimos anos. É estreita a ruazinha e a cachorrada é feliz por lá. Fui poucas vezes, embora eu me sentisse dali, de boas, impressionada por viver na mesma cidade e nunca ter passado por aquelas bandas.

A mãe dela espia entre as aberturas da casa, ergue os braços ordenando que eu entrasse. O barulhinho nas pedras, ajeitadas nos passos curtos, revelavam a idade. Nem me apresentei porque não era necessário. Não havia lugar para estranhamentos.

– Entra moça. Veio ver nossa barriguda? Vou ser vovó mais uma vez de rapaz. Eu só tive mulhé, mas os netos tudo homi.

– Oi! Boa tarde! Sim, tá quase, né? Como não estudamos mais juntas, acabo que nunca vejo sua filha. – ela me abraçou com tamanha satisfação que meu rosto se acomodou como criança no pescoço dela que cheirava café, pão e seus 80 anos.

A casa é de historinha, range o chão, tem chaminé, canteiros com florzinhas coloridas, roupa branca no varal e as xícaras de vidro escuro servidas sobre a toalha enfeitada. Tudo era esteticamente aconchegante e exageradamente simples, em equilíbrio, por isso tão legítimo.

Falávamos sem parar, eu querendo engravidar novamente e minha amiga amada, prenha nos quase nove meses, me relembrando as azias, a falta de posições para dormir, cutucadas inesperadas na bexiga, a lindeza e o apavoro que é gerar. Foi quando fiquei sabendo que sua avó – a bisa do nenenzinho ainda no ventre – era parteira. Aqui por Brusque mesmo, há um punhado de anos, década de 30, por aí.

A mãe dela desatou a contar que ela era uma das poucas crianças que sabia como os bebês nasciam, os pequenos eram privados do parto, eram ignoradas as perguntas com respostas lendárias: vieram da bananeira, presente do céu, e assim ia.

Disse que frequentemente, quando acompanhava sua mãe parteira, percebia que aquele momento era reservado somente às mulheres. Homens eram coadjuvantes ou completamente alheios da gestação ao desmame, do desmame à capacidade de agir da criança como gente grande. De fato, temos uma geração de pais homens muitíssimo mais presentes nesse processo. As cesárias aumentaram, boa parte delas desnecessárias diante do que li, no entanto, o homem anda engravidando junto e parindo também e finalmente pressionado a assumir a responsabilidade que possui na mesma medida da mulher. Bem… uma parcela deles.

A mãe dela me enfeitiçou com cenas minuciosas de partos ofegantes, partos indesejados, partos solitários, partos comemorados, partos que exigiram a vida da mãe ou do bebê.

– Vixx! Hoje em dia é bem melhor. Minha mãe era xingada quando alguma coisa dava errada. Teve uma casa que era longe, longe. Andamos tanto que meu chinelo arrebentou. Minha mãe sei lá porque atendia os pedidos tudo. Nesse dia, menina, o bacuri tinha problema, sabe? Aí queriam que a gente levasse o bichinho embora. Desse um jeito. Eu era criança, não entendia direito. Mas já sabia que a culpa não era da minha mãe. Nem da grávida. Tudo era culpa das mulhé, mas eu sabia que não. Hoje em dia é bem melhor, ô se é.

Levei um presente para minha amiga grávida, um termômetro em formato de tartaruga para água do banho e um pagãozinho, aquelas roupinhas fininhas, calça e blusinha. Ela abriu e sua mãe, só de olho, chegou mais perto e interpelou:

– Pra que serve isso aqui? Mede a febre? Tá grande demais.

– Não, não. Pro banho. É que eu sempre ficava insegura com a temperatura da água quando tive o meu que nasceu no inverno.

– Usa o cotovelo. – satisfeita em me apresentar a descoberta das américas que eu insistia ser nas índias.

– Mãnhee! – minha amiga envergonhada pela mãe espontânea, franca de doçura.

– Deixa, guria. Tô adorando! Se estiver bom pra nosso cotovelo então tá bom pro neném, é isso? Acho que a senhora falou algo que minha mãe havia dito, mas alguma coisa dessa vida moderna me enganou e faz a gente não ficar atenta às coisas tão simples, né?

– Menina, olha a roupara que esse gurizinho que nem nasceu já tem. Lavei essa semana, deu a metade do sofá. Olha ali. Eu tinha sempre sete conjuntinhos, um pra cada dia da semana. Um ou dois casaquinhos. As fraldas davam um varal dia lá e cá. Não tinha dessas aí, né.

– Mãe, deixa a gente conversar.

Embora ela quisesse se assegurar que a mãe não me fizesse sentir ingênua ou chateada perante os presentes inúteis ou mais do mesmo, eu percebi que não se tratava de ingratidão e sim de surpresa e incompreensão pois realmente não faz sentido. Sua mãe era filha de parteira, não só como também torceu muito pano com sangue de placenta, enxugou muita testa materna que derramava um oceano de esforço para dar à luz. Sua mãe era impregnada de experiência. Ela tinha razão.

O supérfluo possui uma lógica no consumo moderno, nas mães atuais, não para a filha da parteira. Os produtos geram um status que projetamos nos filhos, que precisam de muito menos pagãozinhos ou termômetros para água. Somos mães do século XXI vulneráveis ao desejo do que julgamos ser essencial para o bem-estar do filho. É um espetáculo que aplaudimos com muita emoção quando percebemos que as listas do chá de bebê foram preenchidas. Nossa identidade gestante se confunde com a identidade do que vamos gerar. Idealizamos um comportamento e imagem em nossos filhos amparados por produtos porque valorizamos isso. Consumir não é um ato isolado, carrega sensações, texturas, cheiros, experiências no consumo de serviços, socialização. É inebriante. Mas extremamente tóxico se abusar.

Claro que artigos de luxo, ou seja, o desnecessário, sempre fizeram parte da história nas mais diversas civilizações com variantes intuitos, um deles de diferenciar grupos, hierarquizar. Contudo, de acordo com os estudos que venho me envolvendo, nunca consumimos tanto. Nunca, em toda nossa presença no topo da cadeia alimentar, se exigiu tal quantidade absurda de dispensáveis.

Consumimos menos arte e mais cópias, menos histórias nas roupinhas usadas e mais etiquetas, menos percepções orgânicas presentes nos cotovelos na água e mais medidores lindos em formas de bichos que talvez as crianças nunca verão. Não nos tornamos mães ignorantes por adquirir a poltrona para amamentação, nos tornamos mães e pais privados do contentamento com o simples e o suficiente. Como vamos nos conformar com menos, se o menos não é compreendido por nós como o bastante?

Aquela conversa me provocou e fomentou tanto, que hoje, grávida de meu segundo filho, reluto e tento, num esforço constante em desviar das ofertas açucaras e prometedoras, me distanciar do supérfluo e mergulhar mais fundo para ver outras possibilidades.

Para quem trabalha muito, toca o barco espremido nesse país indeciso, corrompido e que nos entrega natureza que corroemos aos poucos, digo-lhes que consumir menos tem me dado mais prazer e paz, mais libertação, mais realização, mais clareza, menos arrependimento.

Querida. Desculpa qualquer coisa né. Lindinha a roupinha que tu deu, viu? Eu sou faladeira. Vai ser bom, assim tenho mais tempo pra lavar. E depois a gente passa pra frente, né? Tem sempre gente que precisa.

Karline Beber Branco – professora e mãe