Não tem como não começar pelo óbvio: estes são tempos sombrios, em que direitos individuais correm o risco de serem solapados por conta de conceitos generalizantes como a tal da “defesa da família” e/ou crenças religiosas. A tal da maioria, se é que é maioria, sempre se achou no direito de criar regras que sirvam para a totalidade de sua comunidade, mesmo para quem tenha outros princípios, crenças ou visão de mundo. O ser humano não é lá muito bom em aceitar a diferença, não é? O primeiro ímpeto humano é sempre encarar o diferente como inimigo e não permitir a sua presença – ou sua existência.

São tempos sombrios… como quase sempre foram. A gente evolui em espiral ou, sei lá, como naquela música que a Elis gravou. São dois pra lá, dois pra cá. Avanços e retrocessos. Puxados e empurrados por quem acredita neles.

Isso é fenômeno made in brazil? Claro que não! O bolero é global. Um dos casos que se encaixam nessa conversa toda é recente e foi protagonizado pela nossa Hermione preferida, Emma Watson.

Ela foi convidada pela revista Porter a escrever uma carta em homenagem a Savita Halappanavar – uma dentista indiana que, em 2012, aos 31 anos, morreu por ter tido negada ajuda médica, ao sofrer um aborto espontâneo. A ajuda seria, de acordo com a lei local, considerada crime. Isso aconteceu na Irlanda e, por conta dessa morte, as leis daquele país relativas ao aborto foram modificadas e receberam o nome de “lei de Savita”.

Na sua carta, Emma Watson enfatiza que a dentista não queria se transformar no rosto de uma causa, que ela só queria ter direito a um procedimento que teria salvado sua vida. Que sua morte reverberou no mundo e que cada vez que uma morte por injustiça social acontece, ela é lamentada coletivamente. O “descanse em paz” se transforma em “descanse no poder”, porque esse sacrifício leva a mudanças necessárias. “Porque você dormiu, muitas de nós acordaram”. Termina dizendo que, por todo o mundo, a luta pela justiça reprodutiva continua.

Mas, como vivemos tempos sombrios, mesmo essa carta respeitosa, que transforma luto em luta, rendeu aquele tipo de ataque online que vemos acontecer o tempo todo, em nossas próprias bolhas das redes sociais. Há quem tente desqualificar Emma Watson como “atriz de um filme só” que não teria o direito de falar sobre “assuntos que não entende”. Há quem lamente as mudanças na lei, que “destroem o direito à vida do bebê”.  Ou que questione chamar aborto de “justiça reprodutiva”.

Aqui, agora, vou resistir à minha vontade pessoal e intransferível de questionar esses argumentos. Afora ataques à pessoa, acredito que cada um tem direito aos próprios princípios, ainda mais em um assunto tão delicado quanto o aborto.

Convenhamos que, em um mundo perfeito, ninguém seria a favor da interrupção de uma gravidez, supondo que todas fossem planejadas, com uso de métodos contraceptivos 100% seguros, contando com uma medicina tão adiantada que qualquer risco de vida da gestante fosse afastado. Claro, nesse mundo, não haveria estupro e todos, meninos e meninas, teriam uma bela e consciente educação sexual, no momento certo de suas vidas.

Mais. Toda vida seria desejada e haveria uma rede social sólida que garantisse o preenchimento de todas as necessidades das crianças, desde antes do seu nascimento. Lembra dos princípios da Declaração Universal dos Direitos da Criança? Aquela que diz que toda criança tem direito a educação, moradia, saúde, proteção, amor? Exatamente isso. Para todas.

Enquanto esse mundo não chega – e ele provavelmente vai demorar muito, muito para chegar, com o ritmo evolutivo que levamos, só nos resta trabalhar com a realidade. E, se conseguirmos esse desprendimento acima da média, também nos resta permitir que a diferença de pensamentos, crenças, princípios e ideias exista, sem que queiramos destruí-la.


Claudia Bia
– jornalista e fã de Emma Watson