Se é negro, é bandido, pode matar. Se é mulher e “deu mole”, pode bater. Muito. Até desfigurar. Ou mata, de uma vez. Não existe feminicídio, mesmo, é tudo invenção da mídia… A lei, mãos humanas mudam. Seja qual seja a intenção – obviamente, sempre tem uma intenção, um grupo a ser protegido, uma situação a ser mantida.

Não importa. Esqueça qualquer ideia de igualdade ou de equidade. Esqueça a noção mais primária de que não devemos matar ou cometer violência. O mundo é dos mais fortes, dos que não nasceram sob a sombria luz do preconceito, dos que podem. Poder é tudo, poder distorce, poder se preserva.

Relativize. “Ah, mas se fulano fez isso, sicrano fez aquilo”. Como se o ideal é que fôssemos todos ruins, errados, trilhando caminhos fora da ética basiquinha. Você pode. O outro não pode. Especialmente se for uma “minoria”. Não importa a quantidade de gente que faça parte dessa minoria. Se não está no poder, se não está no padrão, se historicamente sempre foi visto como inferior, é minoria e não deve ter voz. Cale-se a voz.

Evolução? Questionamento? Um perigo para as certezas confortáveis de “um tempo em que tudo era melhor”. Resta saber melhor para quem. Privilégios, quem aceita abrir mão deles? Quem consegue desconstruir, palavrinha da moda, conceitos tão arraigados? Há quem o faça, sim. Quem perceba a obrigação de analisar cada pequeno pensamento fruto de preconceito. Quem não negocie com a honestidade, frente ao espelho. Quem tenha consciência de que nossa herança pesada é maior do que a nossa vontade de aceitar e acertar – e, então, mantenha a própria visão sob vigilância.

O moço negro assassinado na porta do supermercado teria sido assassinado se não fosse negro? A vítima de espancamento seria criticada, se não fosse mulher? Passou da hora de enxergar nossa própria barbárie, nossa pequena civilidade ficando cada vez menor, mais tacanha, mais vergonhosa.

Não, ninguém escapa. A culpa é nossa… e ela só será superada se a encararmos de frente.

Ah, sim: indignação não se mede, não se compara. Não é honesto comparar a reação à morte do cachorro Manchinha ao assassinato de Pedro Henrique Gonzaga. Nem a indignação à agressão sofrida por Elaine Caparróz ao assassinato de Marielle Franco. Toda vida importa. Toda.


Claudia Bia
– jornalista