coisa crianca
arte: Silvia Teske

Temos um sofá grande, meio torto de tanto pular e sustentar cabanas, que, aliás, faz muito bem o papel de aconchegar. Assistíamos “Animal Planet”, estes canais que admiramos, feito Ets pesquisando a terra selvagem.

– Mãe, por que a gente não caça? Só o guepardo caça?

– Bom, fazemos de outro jeito.

– Como?

– É…

Fui precisa no retorno a ele, embora eu estivesse buscando as conexões no cérebro pra responder essa. Sim, sim, sei como a comida chega à mesa. Quando é que pensei sobre a caça ao alimento? Não lembro. Deve ter sido na escola.

Sei como a comida chega à mesa? Na verdade, ultimamente, não sei bem como a comida chega, nem de onde vem, nem se é comida. Crianças são muito provocativas. Tiram a gente do conforto do sofá. Me estiquei toda, respirei e:

– É que as pessoas dividiram os trabalhos, filho. Por exemplo, seu Opa arruma uma televisão pra outra pessoa e essa pessoa agradece com dinheiro, iguaizinhas as moedas que você guarda, certo? Então o Opa vai ao mercado e troca por comida com a outra pessoa que foi caçar. Mais ou menos assim.

– É que a gente caça comida, né mãe? E o guepardo caça animais.

O processo de urbanização estava sentado ali, com menos de uma década de vida, ilustrando muitas falhas da vida moderna. Organizar nossa sociedade e a cadeia alimentar para uma criança é angustiante porque nós adultos já resolvemos abstrair para a compra e venda de produtos e não a compra e venda de animais e plantas. Devo ter estalado o pescoço algumas vezes enquanto articulava a verdade sobre o tipo de caçadores que somos e o resto que nos é subjugado.

Acossamos, pescamos, plantamos por tabela. Tudo bem. Só que, não comemos somente, negociamos. Tudo bem. É para todos saírem ganhando nesse escambo, não é?!

Foi possível desatar analogias e fazê-lo acompanhar o raciocínio. Depois é que complicou, pois era importante abordar a complexa estrutura dos que comem por demais e os que não comem, do porquê a metade do mundo está obesa e a outra passa fome, da integridade entre o caçador que conquista o que vai alimentá-lo e da injustiça do que desperdiça a vida de inúmeros animais e plantas em nome do fluxo do mercado. Me senti uma impostora na tentativa de dar-lhe alguma razão de sermos assim. Quis acreditar que caçamos como o guepardo, só que de outro jeito, como eu havia dito primeiramente. Mas não sei o que fazemos…

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Karline Beber Branco – professora e mãe