Para quem ficou distante dos desfiles e bloquinhos, uma coisa chamou bastante a atenção. Este foi um Carnaval cheio de sub leituras. De discussões. Até do que é chamado, hoje, muito negativamente, de problematização.
Do desfile pouco televisionado da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti, que retomou a velha tradição de aproveitar o Carnaval para levar a público um desejável e explícito protesto político… até todo um novo dress code aprovado para a festa, saímos do foco básico celebridades – violência – xixi na rua que vimos nos anos recentes. De um jeito ou de outro, a coisa toda ficou mais interessante.
Rasgando a fantasia
Em relação às fantasias, se você acompanhou a conversa que se espalhou pelas redes sociais, dificilmente ficou imune a ter uma opinião. Afinal, pode se fantasiar de alguma etnia? Homem pode continuar se vestindo de mulher durante os dias de festa? É brincadeira ou preconceito? A coisa complicou.
E, de novo: não pense que isso é porque o mundo está ficando chato. Ele está ficando diferente. O que pode ser muito bom. Fazendo um paralelo… será que você, se tivesse vivido na época, acharia chatas as sufragistas que lutavam pelo voto feminino? Quem, hoje, seria contra?
Parênteses: ops, se duvidar, em um momento histórico em que existem movimentos de quem acredita que a terra é plana, deve ter quem queira reverter o voto das mulheres ou a escravidão com escritura…
A gente rejeita, estranha, desconfia… mas no fim se acostuma com os novos hábitos. Eles nos fazem evoluir coletivamente. Por mais que a gente ame tradições, não tem como simplesmente sentar em cima das próprias mãos e se recusar a viver novidades que sejam mais inclusivas. Até os idiomas evoluem. Leis mudam. Quem se recusa a mudar, fica obsoleto. Ninguém quer isso.
A questão das fantasias surgiu, imagino, com a rejeição mundial ao blackface, que é aquele recurso de pintar o rosto para representar algum personagem negro. Alguém aí lembra do Al Jolson? Aquele ator que ficou famoso por cantar com o rosto pintado de preto e que foi o protagonista do que é considerado o primeiro filme sonoro, The Jazz Singer? Blackface era aceitável até uns anos atrás, mas hoje é visto como uma gafe imperdoável – provavelmente porque o recurso era usado em um tipo de teatro, o minstrel show, que mostrava versões caricaturais de seus personagens negros, com um forte fundo racista.
Isso pegou, por exemplo, nas críticas a um tradicional bloco de carnaval mineiro em que homens (na maioria brancos) se vestem de “domésticas de luxo”. Junte o racismo do blackface ao clichê desrespeitoso para com as empregadas domésticas… e você vai entender a chuva de críticas e protestos que o bloco recebeu, este ano. Também a “nega maluca” deixou de ser aceitável.
Daí, tudo vai se espalhando sob o ponto de vista do lugar de fala: se você não é índio, não tem o direito de se vestir como uma caricatura dos índios. Se não é asiática, não tente se transformar em uma gueixa de carnaval. Isso soa estranho? Sim, em um primeiro momento. Mas, se a gente tentar praticar a empatia e se colocar no lugar do outro (ou procurar nossas próprias facetas caricaturáveis), vai acabar entendendo que o melhor é evitar essas escolhas. Sempre podemos sair de unicórnio. Ou, enquanto não fazemos contato imediato do terceiro grau, de alien.
Vai ser mais difícil questionar os super tradicionais blocos de sujos, mas isso vai acabar acontecendo. Vai ser – e já está sendo – uma conversa bem complicada, até psicologicamente. Afinal, por que homem gosta tanto de se vestir de mulher? Vai além da caricatura e chega no que foi chamado por Barbara Gancia, no último Papo de Segunda, de “inveja do acessório”, contraposto à tal “inveja do pênis”? De repente…
A consequência de todo esse questionamento? Se nos comportarmos bem na discussão, podemos aprender bastante. Podemos perceber que o outro, aquele que fingimos ser nos dias de brincadeira, pode se sentir ofendido e reduzido a uma caricatura que reflete seus problemas de aceitação no dia a dia. Podemos perceber também que a nossa fantasia pode atrapalhar lutas justas e necessárias. Um mundo com mais respeito não precisa ser um mundo mais chato. Talvez seja só mais empático.
Quem sabe, com sorte e respeito pela voz alheia, possamos chegar a um equilíbrio em que todos se sintam representados, sem necessidade de mais bate-boca. Mas o caminho passa, sim, pela polarização de opiniões. Será que a gente consegue?
Vou beijar-te agora
Mudando de foco… você talvez tenha vivido aquele tempo em que todo mundo estranhou a mudança de letra em canções infantis que todo mundo aprendeu na escola. Aquele tempo em que as crianças deixaram de atirar o pau no gato. Pois então. A gente não precisa deixar de cantar as velhas marchinhas de carnaval, mas não custa prestar mais atenção ao que elas dizem. Ao que era aceitável, mas não é mais.
Não dá mais para dizer para alguém não levar a mal… mas que vai dar um beijo porque é carnaval. O beijo, caro folião do passado, agora tem que ser consentido. Isso nem deve ser muito preocupante para o beijador, porque boa parte das pessoas adeptas do carnaval até gostam de colecionar beijos. Mas participar da festa não é, em si, uma permissão. Lembra do não é não da semana passada? Voltamos a ele.
E a cabeleira do Zezé, que até virou nome de livro que conta a história de seu autor, João Roberto Kelly?
Sorry, baby, mas não custa perceber que a letra da marchinha tem os dois pés fincados na homofobia. Claro, ela virou sucesso em um tempo em que nem o termo homofobia devia existir. Mas há quem defenda que ela seja banida do repertório carnavalesco. Será que precisa? A polêmica é parecida com aquela que questiona expor as crianças aos livros infantis de Monteiro Lobato, que refletem a realidade de quando foram escritos, incluindo o que pode considerado, hoje, racismo.
Talvez seja suficiente ter a noção do que os livros e as músicas dizem – e ter certeza de que não reflete o que a gente pensa. Muito menos o que a gente faz. Ninguém tem o direito de cortar o cabelo alheio, literalmente ou em sentido figurado. Será que a gente consegue?
O paraíso não é aqui
Não dá para dar uma de Rede Globo e não falar na escola de samba carioca que pegou um elefante bem crescido e colocou no centro das salas de visita do país, começando pela maior delas, a tela da Globo. A transmissão do desfile em si, na noite e madrugada do último domingo, foi feita na íntegra. Quem viu o desfile da Paraíso do Tuiuti, exibido na íntegra, é claro, já começou a se divertir com o constrangimento dos narradores, especialmente quando o enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? ganhou um banho de realidade atual e mostrou os “manifestantes fantoches”, o “presidente vampiro do neoliberalismo” e a ala fantasiada com carteiras de trabalho.
O constrangimento continuou no dia seguinte, com a escola ganhando muito menos tempo na programação jornalística da Globo, em comparação com as outras que desfilaram na mesma noite. Sintomático.
Você pode concordar ou discordar da visão que a escola levou para o sambódromo, mas uma percepção poderia ser unânime: precisamos pensar e falar mais sobre a realidade atual do nosso país. Com menos ódio e mais vontade de acertar. Será que a gente consegue?
Claudia Bia – jornalista e fã de pontos de interrogação.